quarta-feira, 6 de julho de 2011

Futuros Amantes, por Chico Buarque

Futuros Amantes, por Chico Buarque

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, quarta, 6 de julho de 2011 às 00:20

Não se afobe, não

Que nada é pra já

O amor não tem pressa

Ele pode esperar em silêncio

Num fundo de armário

Na posta-restante

Milênios, milênios

No ar

E quem sabe, então

O Rio será

Alguma cidade submersa

Os escafandristas virão

Explorar sua casa

Seu quarto, suas coisas

Sua alma, desvãos

Sábios em vão

Tentarão decifrar

O eco de antigas palavras

Fragmentos de cartas, poemas

Mentiras, retratos

Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não

Que nada é pra já

Amores serão sempre amáveis

Futuros amantes, quiçá

Se amarão sem saber

Com o amor que eu um dia

Deixei pra você

A Menina Silvana, por Rubem Braga - Cronica da II Guerra Mundial

A Menina Silvana, por Rubem Braga - Cronica da II Guerra Mundial

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, quarta, 29 de junho de 2011 às 12:49

Um camponês velho deu as informações ao sargento: Silvana Martinelli, 10 anos de idade.

A menina estava quase inteiramente nua, porque cinco ou seis estilhaços de uma granada alemã a haviam atingido em várias partes do corpo. Os médicos e os enfermeiros, acostumados a cuidar rudes corpos de homens, inclinavam-se sob a lâmpada para extrair os pedaços de aço que haviam dilacerado aquele corpo branco e delicado como um lírio - agora marcado de sangue. A cabeça de Silvana descansava de lado, entre cobertores. A explosão estúpida poupara aquela pequena cabeça castanha, aquele perfil suave e firme que Da Vinci amaria desenhar. Lábios cerrados, sem uma palavra ou um gemido, ela apenas tremia um pouco - quando lhe tocavam num ferimento contraía quase imperceptivelmente os músculos da face. Mas tinha os olhos abertos - e quando sentiu a minha sombra ergueu-os um pouco. Nos seus olhos eu não vi essa expressão de cachorro batido dos estropiados, nem essa luz de dor e raiva dos homens colhidos no calor do combate, nem essa impaciência dolorosa de tantos feridos, ou o desespero dos que acham que vão morrer. Ela me olhou quietamente. A dor contraía-lhe, num pequeno tremor, as pálpebras, como se a luz lhe ferisse um pouco os olhos. Ajeitei-lhe a manta sobre a cabeça, protegendo-a da luz, e ela voltou a me olhar daquele jeito quieto e firme de menina correta.

Deus, que está no céu - se é que, depois de tantos desgovernos cruéis e tanta criminosa desídia, ninguém o pôs para fora de lá, ou Vós mesmo, Senhor, não vos pejais de estar aí quando Vossos filhos andam neste inferno! - Deus sabe que tenho visto alguns sofrimentos de crianças e mulheres. A fome dessas meninas da Itália que mendigam na entrada dos acampamentos, a humilhação dessas mulheres que diante dos soldados trocam qualquer dignidade por um naco de chocolate - nem isso, nem o servilismo triste mais que tudo, dos homens que precisam levar pão à sua gente - nada pode estragar a minha confortável posição de correspondente. Vai-se tocando, vai-se a gente acostumando no ramerrão da guerra; é um ramerrão como qualquer outro: e tudo entra nesse ramerrão - a dor, a morte, o medo, o disco de “Lili Marlene” junto de uma lareira que estala, a lama, o vinho, a cama-rolo, a brutalidade, a ajuda, a ganância dos aproveitadores, o heroísmo, as cansadas pilhérias - mil coisas no acampamento e na frente, em sucessão monótona. Esse corneteiro que o frio da madrugada desafina não me estraga a lembrança de antigos quartéis de ilusões, com alvoradas de violino - Senhor, eu juro, sou uma criatura rica de felicidades meigas, sou muito rico, muito rico, ninguém nunca me amargará demais. E às vezes um homem recusa comover-se: meninas da Toscana, eu vi vossas irmãzinhas do Ceará, barrigudinhas, de olhos febris, desidratadas, pequenos trapos de poeira humana que o vento da seca ia a tocar pelas estradas. Sim, tenho visto alguma coisa e também há coisas que homens que viram me contam: a ruindade fria dos que exploram e oprimem e proíbem pensar, e proíbem comer, e até o sentimento mais puro torcem e estragam, as vaidades monstruosas que são massacres lentos e frios de outros seres - sim, por mais distraído que seja um repórter, ele sempre, em alguma parte em que anda, vê alguma coisa.

Muitas vezes não conta. Há 13 anos trabalho neste ramo - e muitas vezes não conto. Mas conto a história sem enredo dessa menina ferida. Não, sei que fim levou e se morreu ou está viva, mas vejo seu fino corpo branco e seus olhos esverdeados e quietos. Não me interessa que tenha sido inimigo o canhão que a feriu. Na guerra, de lado a lado, é impossível, até um certo ponto, evitar essas coisas. Mas penso nos homens que começaram esta guerra e nos que permitiram que eles começassem. Agora é tocar a guerra - e quem quer que possa fazer qualquer coisa para tocar a guerra mais depressa, para aumentar o número de bombas dos aviões e tiros das metralhadoras, para apressar a destruição, para aumentar aos montes a colheita de mortes - será um patife se não ajudar. É preciso acabar com isso, e isso só se acaba a ferro e fogo, com esforço e sacrifícios de todos, e quem pode mais deve fazer muito mais, e não cobrar o sacrifício do pobre e se enfeitar com as glórias fáceis. É preciso acabar com isso, e acabar com os homens que começaram isso e com tudo o que causa isso - o sistema idiota e bárbaro de vida social onde um grupo de privilegiados começa a matar quando não tem outro meio de roubar.

Pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (sem importância nenhuma no oceano de crueldades e injustiças), pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (mas ó hienas, ó porcos, de voracidade monstruosa, e vós também, águias pançudas e urubus, ó altos poderosos de conversa fria ou voz frenética, que coisa mais sagrada sois ou conheceis que essa quieta menina camponesa?), pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (ó negociantes que roubais na carne, quanto valem esses pedaços estraçalhados?) - por esse pequeno ser simples, essa pequena coisa chamada uma pessoa humana, é preciso acabar com isso, é preciso acabar para sempre, de uma vez por todas.

É assim que te quero, amor, por Pablo Neruda

É assim que te quero, amor, por Pablo Neruda

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, terça, 28 de junho de 2011 às 02:28

É assim que te quero, amor,

assim, amor, é que eu gosto de ti,

tal como te vestes

e como arranjas

os cabelos e como

a tua boca sorri,

ágil como a água

da fonte sobre as pedras puras,

é assim que te quero, amada,

Ao pão não peço que me ensine,

mas antes que não me falte

em cada dia que passa.

Da luz nada sei, nem donde

vem nem para onde vai,

apenas quero que a luz alumie,

e também não peço à noite explicações,

espero-a e envolve-me,

e assim tu pão e luz

e sombra és.

Chegastes à minha vida

com o que trazias,

feita

de luz e pão e sombra, eu te esperava,

e é assim que preciso de ti,

assim que te amo,

e os que amanhã quiserem ouvir

o que não lhes direi, que o leiam aqui

e retrocedam hoje porque é cedo

para tais argumentos.

Amanhã dar-lhes-emos apenas

uma folha da árvore do nosso amor, uma folha

que há-de cair sobre a terra

como se a tivessem produzido os nosso lábios,

como um beijo caído

das nossas alturas invencíveis

para mostrar o fogo e a ternura

de um amor verdadeiro.

A INJUSTIÇA, por Pablo Neruda

A INJUSTIÇA, por Pablo Neruda

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, terça, 28 de junho de 2011 às 02:23

Quem descobre o quem sou descobrirá

quem és.

E o como, e o aonde.

De rompante toquei toda a injustiça.

A fome não era só fome,

mas a medida do homem.

O frio e o vento eram também medidas.

Mediu cem fomes e caiu o erguido.

Aos cem frios foi enterrado Pedro.

Um só vento durou a pobre casa.

E aprendi que o centímetro e o grama,

A colher e a língua mediam a cobiça

e que o homem assediado tombava de repente

num buraco, e já não mais sabia.

Não mais, e esse era o lugar,

o real regalo, o dom, a luz, a vida,

isso era padecer de frio e fome,

e não ter sapatos e tremer

diante do juiz, defronte a outro,

a outro ser com espada ou com tinteiro,

e assim a empurrões, cavando e cortando,

cosendo, fazendo pão, semeando trigo,

pregando cada prego que pedia madeira,

metendo-se na terra como um intestino

para arrancar, às cegas, o carvão crepitante

e, ainda mais, subindo rios e cordilheiras,

cavalgando cavalos, e movendo embarcações,

cozendo telhas, soprando vidros, lavando roupa,

de tal maneira que parecia

tudo isto o reino recém-levantado,

uva resplandecente do cacho,

quando o homem resolveu ser feliz,

e não era, não era assim. Foi descobrindo

a lei da desventura

o trono de ouro sanguinário,

a liberdade celestina,

a pátria sem abrigo

o coração ferido e fatigado,

e um rumor de mortos sem lágrimas,

secos, como pedras que caem.

E então deixei de ser menino

Porque compreendi que a meu povo

não lhe permitiram a vida

e lhe negaram a sepultura.

Elogio do Revolucionário, por Bertolt Brecht

Elogio do Revolucionário, por Bertolt Brecht

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, terça, 28 de junho de 2011 às 02:21

Quando aumenta a repressão, muitos desanimam. Mas a coragem dele aumenta. Organiza sua luta pelo salário, pelo pão e pela conquista do poder. Interroga a propriedade: De onde vens? Pergunta a cada idéia: Serves a quem? Ali onde todos calam, ele fala. E onde reina a opressão e se acusa o destino,ele cita os nomes. À mesa onde ele se sentase senta a insatisfação. À comida sabe mal e a sala se torna estreita. Aonde o vai a revolta e de onde o expulsam persiste a agitação.

Os comunistas, por Pablo Neruda

Os comunistas, por Pablo Neruda

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, terça, 28 de junho de 2011 às 02:17

Os comunistas de Pablo Neruda

Os comunistas.

Os que colocam a alma na pedra,

no ferro, na dura disciplina,

ali vivemos só por amor

e já se sabe que nos dessangramos

quando a estrela foi tergiversada

pela lua sombria do eclipse.

Agora vereis que somos e pensamos.

Agora vereis que somos e seremos.

Somos a prata pura da terra,

o verdadeiro mineral do homem,

a fortificação da esperança;

um minuto de sombra não nos cega:

com nenhuma agonia morreremos.

Amar, por Mário Quintana

Amar, por Mário Quintana

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, domingo, 26 de junho de 2011 às 23:46

Amar:

Fechei os olhos para não te ver

e a minha boca para não dizer...

E dos meus olhos fechados desceram lágrimas que não enxuguei,

e da minha boca fechada nasceram sussurros

e palavras mudas que te dediquei...

O amor é quando a gente mora um no outro.


Estradas, por Zé Geraldo

Estradas, por Zé Geraldo

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, quarta, 22 de junho de 2011 às 18:45

Trago no meu peito ardendo em chamas

pés descalços sobre a lama

que cobriu nossos caminhos

Desconheço qualquer traço de esperança

que o abraço da lembrança

faça renascer sozinho

Esse corpo magro e mal-tratado

Esse cérebro calejado

quer abrir os corações

E acabar de vez com a inquietude

que emudece a juventude

Que divide as gerações

Nós viemos juntos de outras eras

semeando primaveras

que não tardam florescer

Acumulando uma força invisível

num processo irreversível

pra não ser mais preciso ver

A calada da noite mostrando homens cabisbaixos

Caminhando sob o olhar perplexo da madrugada

Perguntando onde vão dar

os atalhos dessa nova era

Essa nova estrada

Essa estrada vai passar

pela Vila da Boa Esperança

Vai cruzar o Município dos Homens de Fé

Vai fazer da Certeza o seu Arraial

Na Cidade dos Jovens Sem Medo

vai fazer o seu ponto final

Maria do Futuro, por Taiguara

Maria do Futuro, por Taiguara

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, quarta, 22 de junho de 2011 às 18:34

Duna branca, lua imensa, Maria deita

nua e branda como as nuvens que a lua enleita.

Duas tranças, uma flor e Maria enfeita

suas mansas curvas cheias que a areia aceita.

Era noite de verão,

vi o amor nascer num sorriso seu.

O luar me convidou,

o mar nos temperou e ela me envolveu…

Nessa rede ela prendeu

minha dor civil, minha solidão.

Nessa rede eu vi nascer minha liberdade.

Tua rede, minha sede,

e o amor te trouxe…

Quero ver o mar salgando teu seio doce…

E em cadeias de amor puro

viver guardado…

Joga areias do futuro no meu passado

Na Ilha Por Vezes Habitada, por José Saramago

Na Ilha Por Vezes Habitada, por José Saramago

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, quarta, 22 de junho de 2011 às 18:30

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,

manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.

Então sabemos tudo do que foi e será.

O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade,

e dizem-se as palavras que a significam.

Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos.

Com doçura.

Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites.

Podemos então dizer que somos livres,

com a paz e o sorriso de quem se reconhece

e viajou à roda do mundo infatigável,

porque mordeu a alma até aos ossos dela.

Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres

como a água, a pedra e a raiz.

Cada um de nós é por enquanto a vida.

Isso nos baste.

Choro Bandido, por Chico Buarque

Choro Bandido, por Chico Buarque

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, quarta, 22 de junho de 2011 às 18:25

Mesmo que os cantores sejam falsos como eu

Serão bonitas, não importa

São bonitas as canções

Mesmo miseráveis os poetas

Os seus versos serão bons

Mesmo porque as notas eram surdas

Quando um deus sonso e ladrão

Fez das tripas a primeira lira

Que animou todos os sons

E daí nasceram as baladas

E os arroubos de bandidos como eu

Cantando assim:

Você nasceu para mim

Você nasceu para mim

Mesmo que você feche os ouvidos

E as janelas do vestido

Minha musa vai cair em tentação

Mesmo porque estou falando grego

Com sua imaginação

Mesmo que você fuja de mim

Por labirintos e alçapões

Saiba que os poetas como os cegos

Podem ver na escuridão

E eis que, menos sábios do que antes

Os seus lábios ofegantes

Hão de se entregar assim:

Me leve até o fim

Me leve até o fim

Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso

São bonitas, não importa

São bonitas as canções

Mesmo sendo errados os amantes

Seus amores serão bons

Eu, por Florbela Espanca

Eu, por Florbela Espanca

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, quarta, 22 de junho de 2011 às 12:44

Eu sou a que no mundo anda perdida,

Eu sou a que na vida não tem norte,

Sou a irmã do Sonho, e desta sorte

Sou a crucificada… a dolorida…

Sombra de névoa ténue e esvaecida,

E que o destino amargo, triste e forte,

Impele brutalmente para a morte!

Alma de luto sempre incompreendida!…

Sou aquela que passa e ninguém vê…

Sou a que chamam triste sem o ser…

Sou a que chora sem saber porquê…

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,

Alguém que veio ao mundo pra me ver

E que nunca na vida me encontrou!

O conto da ilha desconhecida, por José Saramago

O conto da ilha desconhecida, por José Saramago

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, terça, 21 de junho de 2011 às 10:33

Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco. A casa do rei tinha muitas mais portas, mas aquela era a das petições. Como o rei passava todo o tempo sentado à porta dos obséquios (entenda-se, os obséquios que lhe faziam a ele), de cada vez que ouvia alguém a chamar à porta das petições fingia-se desentendido, e só quando o ressoar contínuo da aldraba de bronze se tornava, mais do que notório, escandaloso, tirando o sossego à vizinhança (as pessoas começavam a murmurar, Que rei temos nós, que não atende), é que dava ordem ao primeiro-secretário para ir saber o que queria o impetrante, que não havia maneira de se calar. Então, o primeiro-secretário chamava o segundo-secretário, este chamava o terceiro, que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava o segundo, e assim por aí fora até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres. O suplicante dizia ao que vinha, isto é, pedia o que tinha a pedir, depois instalava-se a um canto da porta, à espera de que o requerimento fizesse, de um em um, o caminho ao contrário, até chegar ao rei. Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava a resposta, e já não era pequeno sinal de atenção ao bem-estar e felicidade do seu povo quando resolvia pedir um parecer fundamentado por escrito ao primeiro-secretário, o qual, escusado se ria dizer, passava a encomenda ao segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente, até chegar outra vez à mulher da limpeza, que despachava sim ou não conforme estivesse de maré.

Contudo, no caso do homem que queria um barco, as coisas não se passaram bem assim. Quando a mulher da limpeza lhe perguntou pela nesga da porta, Que é que tu queres, o homem, em lugar de pedir, como era o costume de todos, um título, uma condecoração, ou simplesmente dinheiro, respondeu, Quero falar ao rei, Já sabes que o rei não pode vir, está na porta dos obséquios, respondeu a mulher, Pois então vai lá dizer-lhe que não saio daqui até que ele venha, pessoalmente, saber o que quero, rematou o homem, e deitou-se ao comprido no limiar, tapando-se com a manta por causa do frio. Entrar e sair, só por cima dele. Ora, isto era um enorme problema, se tivermos em consideração que, de acordo com a pragmática das portas, ali só se podia atender um suplicante de cada vez, donde resultava que, enquanto houvesse alguém à espera de resposta, nenhuma outra pessoa se poderia aproximar a fim de expor as suas necessidades ou as suas ambições. À primeira vista, quem ficava a ganhar com este artigo do regulamento era o rei, dado que, sendo menos numerosa a gente que o vinha incomodar com lamúrias, mais tempo ele passava a ter, e mais descanso, para receber, contemplar e guardar os obséquios. À segunda vista, porém, o rei perdia, e muito, porque os protestos públicos, ao notar-se que a resposta estava a tardar mais do que o justo, faziam aumentar gravemente o descontentamento social, o que, por seu turno, ia ter imediatas e negativas consequências no afluxo de obséquios. No caso que estamos narrando, o resultado da ponderação entre os benefícios e os prejuízos foi ter ido o rei, ao cabo de três dias, e em real pessoa, à porta das petições, para saber o que queria o intrometido que se havia negado a encaminhar o requerimento pelas competentes vias burocráticas. Abre a porta, disse o rei à mulher da limpeza, e ela perguntou, Toda, ou só um bocadinho. O rei duvidou por um instante, na verdade não gostava muito de se expor aos ares da rua, mas depois reflexionou que pareceria mal, além de ser indigno da sua majestade, falar com um súdito através de uma nesga, como se tivesse medo dele, mormente estando a assistir ao colóquio a mulher da limpeza, que logo iria dizer por aí sabe Deus o quê, De par em par, ordenou. O homem que queria um barco levantou-se do degrau da porta quando começou a ouvir correr os ferrolhos, enrolou a manta e pôs-se à espera. Estes sinais de que finalmente alguém vinha atender, e que portanto a praça não tardaria a ficar desocupada, fizeram aproximar-se da porta uns quantos aspirantes à liberalidade do trono que por ali andavam, prontos a assaltar o lugar mal ele vagasse. O inopinado aparecimento do rei (nunca uma tal coisa havia sucedido desde que ele andava de coroa na cabeça) causou uma surpresa desmedida, não só aos ditos candidatos mas também à vizinhança que, atraída pelo repentino alvoroço, assomara às janelas das casas, no outro lado da rua. A única pessoa que não se surpreendeu por aí além foi o homem que tinha vindo pedir um barco. Calculara ele, e acertara na previsão, que o rei, mesmo que demorasse três dias, haveria de sentir-se curioso de ver a cara de quem, sem mais nem menos, com notável atrevimento, o mandara chamar. Repartido pois entre a curiosidade que não pudera reprimir e o desagrado de ver tanta gente junta, o rei, com o pior dos modos, perguntou três perguntas seguidas, Que é que queres, Por que foi que não disseste logo o que querias, Pensarás tu que eu não tenho mais nada que fazer, mas o homem só respondeu à primeira pergunta, Dá-me um barco, disse. O assombro deixou o rei a tal ponto desconcertado, que a mulher da limpeza se apressou a chegar-lhe uma cadeira de palhinha, a mesma em que ela própria se sentava quando precisava de trabalhar de linha e agulha, pois, além da limpeza, tinha também à sua responsabilidade alguns, trabalhos menores de costura no palácio como passajar as peúgas dos pajens. Mal sentado, porque a cadeira de palhinha era muito mais baixa que o trono, o rei estava a procurar a melhor maneira de acomodar as pernas, ora encolhendo-as ora estendendo-as para os lados, enquanto o homem que queria um barco esperava com paciência a pergunta que se seguiria, E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei de facto perguntou quando finalmente se deu por instalado, com sofrível comodidade, na cadeira da mulher da limpeza, Para ir à procura da ilha desconhecida, respondeu o homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm a mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida, A quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela existe, Simplesmente porque é impossível que não exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui para me pedires um barco, Sim, vim aqui para pedir-te um barco, E tu quem és, para que eu to dê, E tu quem és, para que não mo dês, Sou o rei deste reino, e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhes pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei, inquieto, Que tu, sem eles, és nada, e que eles, sem ti, poderão sempre navegar, Às minhas ordens, com os meus pilotos e os meus marinheiros, Não te peço marinheiros nem piloto, só te peço um barco, E essa ilha desconhecida, se a encontrares, será para mim, A ti, rei, só te interessam as ilhas conhecidas, Também me interessam as desconhecidas quando deixam de o ser, Talvez esta não se deixe conhecer, Então não te dou o barco, Darás. Ao ouvirem esta palavra, pronunciada com tranquila firmeza, os aspirantes à porta das petições, em quem, minuto após minuto, desde o princípio da conversa, a impaciência vinha crescendo, e mais para se verem livres dele do que por simpatia solidária, resolveram intervir a favor do homem que queria o barco, começando a gritar, Dá-lhe o barco, dá-lhe o barco. O rei abriu a boca para dizer à mulher da limpeza que chamasse a guarda do palácio a vir restabelecer imediatamente a ordem pública e impor a disciplina, mas, nesse momento, as vizinhas que assistiam das janelas juntaram-se ao coro com entusiasmo, gritando como os outros, Dá-lhe o barco, dá-lhe o barco. Perante uma tão iniludível manifestação da vontade popular e preocupado com o que, neste meio tempo, já haveria perdido na porta dos obséquios, o rei levantou a mão direita a impor silêncio e disse, Vou dar-te um barco, mas a tripulação terás de arranjá-la tu, os meus marinheiros são-me precisos para as ilhas conhecidas. Os gritos de aplauso do público não deixaram que se percebesse o agradecimento do homem que viera pedir um barco, aliás o movimento dos lábios tanto teria podido ser Obrigado, meu senhor, como Eu cá me arranjarei, mas o que distintamente se ouviu foi o dito seguinte do rei, Vais à doca, perguntas lá pelo capitão do porto, dizes-lhe que te mandei eu, e ele que te dê o barco, levas o meu cartão. O homem que ia receber um barco leu o cartão de visita, onde dizia Rei por baixo do nome do rei, e eram estas as palavras que ele havia escrito sobre o ombro da mulher da limpeza, Entrega ao portador um barco, não precisa ser grande, mas que navegue bem e seja seguro, não quero ter remorsos na consciência se as coisas lhe correrem mal. Quando o homem levantou a cabeça, supõe-se que desta vez é que iria agradecer a dádiva, já o rei se tinha retirado, só estava a mulher da limpeza a olhar para ele com cara de caso. O homem desceu do degrau da porta, sinal de que os outros candidatos podiam enfim avançar, nem valeria a pena explicar que a confusão foi indescritível, todos a quererem chegar ao sítio em primeiro lugar, mas com tão má sorte que a porta já estava fechada outra vez. A aldraba de bronze tornou a chamar a mulher da limpeza, mas a mulher da limpeza não está, deu a volta e saiu com o balde e a vassoura por outra porta, a das decisões, que é raro ser usada, mas quando o é, é. Agora sim, agora pode-se compreender o porquê da cara de caso com que a mulher da limpeza havia estado a olhar, foi esse o preciso momento em que ela resolveu ir atrás do homem quando ele se dirigisse ao porto a tomar conta do barco. Pensou ela que já bastava de uma vida a limpar e a lavar palácios, que tinha chegado a hora de mudar de ofício, que lavar e limpar barcos é que era a sua vocação verdadeira, no mar, ao menos, a água nunca lhe faltaria. O homem nem sonha que, não tendo ainda sequer começado a recrutar os tripulantes, já leva atrás de si a futura encarregada das baldeações e outros asseios, também é deste modo que o destino costuma comportar-se connosco, já está mesmo atrás de nós, já estendeu a mão para tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar, Acabou-se, não há mais que ver, é tudo igual.

Andando, andando, o homem chegou ao porto, foi à doca, perguntou pelo capitão, e enquanto ele não chegava deitou-se a adivinhar qual seria, de quantos barcos ali estavam, o que iria ser o seu, grande já se sabia que não, o cartão de visita do rei era muito claro neste ponto, por conseguinte ficavam de fora os paquetes, os cargueiros e os navios de guerra, tão-pouco poderia ser ele tão pequeno que resistisse mal às forças do vento e aos rigores do mar, o rei também havia sido categórico neste ponto, Que navegue bem e seja seguro, foram estas as suas formais palavras, assim implicitamente excluindo os botes, as faluas e os escaleres, os quais, sendo bons navegantes, e seguros, conforme a condição de cada qual, não tinham nascido para sulcar os oceanos, que é onde se encontram as ilhas desconhecidas. Um pouco afastada dali, escondida por trás de uns bidões, a mulher da limpeza correu os olhos pelos barcos atracados, Para o meu gosto, aquele, pensou, porém a sua opinião não contava, nem sequer havia sido ainda contratada, vamos ouvir antes o que dirá o capitão do porto. O capitão veio, leu o cartão, mirou o homem de alto a baixo, e fez a pergunta que o rei se tinha esquecido de fazer, Sabes navegar, tens carta de navegação, ao que o homem respondeu, Aprenderei no mar. O capitão disse, Não to aconselharia, capitão sou eu, e não me atrevo com qualquer barco, Dá-me então um com que possa atrever-me eu, não, um desses não, dá-me antes um barco que eu respeite e que possa respeitar-me a mim, Essa linguagem é de marinheiro, mas tu não és marinheiro, Se tenho a linguagem, é como se o fosse. O capitão tornou a ler o cartão do rei, depois perguntou, Poderás dizer-me para que queres o barco, Para ir à procura da ilha desconhecida, Já não há ilhas desconhecidas, O mesmo me disse o rei, O que ele sabe de ilhas, aprendeu-o comigo, É estranho que tu, sendo homem do mar, me digas isso, que já não há ilhas desconhecidas, homem da terra sou eu, e não ignoro que todas as ilhas, mesmo as conhecidas, são desconhecidas enquanto não desembarcarmos nelas, Mas tu, se bem entendi, vais à procura de uma onde nunca ninguém tenha desembarcado, Sabê-lo-ei quando lá chegar, Se chegares, Sim, às vezes naufraga-se pelo caminho, mas, se tal me viesse a acontecer, deverias escrever nos anais do porto que o ponto a que cheguei foi esse, Queres dizer que chegar, sempre se chega, Não serias quem és se não o soubesses já. O capitão do porto disse, Vou dar-te a embarcação que te convém, Qual é ela, É um barco com muita experiência, ainda do tempo em que toda a gente andava à procura de ilhas desconhecidas, Qual é ele, Julgo até que encontrou algumas, Qual, Aquele. Assim que a mulher da limpeza percebeu para onde o capitão apontava, saiu a correr de detrás dos bidões e gritou, É o meu barco, é o meu barco, há que perdoar-lhe a insólita reivindicação de propriedade, a todos os títulos abusiva, o barco era aquele de que ela tinha gostado, simplesmente. Parece uma caravela, disse o homem, Mais ou menos, concordou o capitão, no princípio era uma caravela, depois passou por arranjos e adaptações que a modificaram um bocado, Mas continua a ser uma caravela, Sim, no conjunto conserva o antigo ar, E tem mastros e velas, Quando se vai procurar ilhas desconhecidas, é o mais recomendável. A mulher da limpeza não se conteve, Para mim não quero outro, Quem és tu, perguntou o homem, Não te lembras de mim, Não tenho idéia, Sou a mulher da limpeza, Qual limpeza, A do palácio do rei, A que abria a porta das petições, Não havia outra, E por que não estás tu no palácio do rei a limpar e a abrir portas, Porque as portas que eu realmente queria já foram abertas e porque de hoje em diante só limparei barcos, Então estás decidida a ir comigo procurar a ilha desconhecida, Saí do palácio pela porta das decisões, Sendo assim, vai para a caravela, vê como está aquilo, depois do tempo que passou deve precisar de uma boa lavagem, e tem cuidado com as gaivotas, que não são de fiar, Não queres vir comigo conhecer o teu barco por dentro, Tu disseste que era teu, Desculpa, foi só porque gostei dele, Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar. O capitão do porto interrompeu a conversa, Tenho de entregar as chaves ao dono do barco, a um ou a outro, resolvam-se, a mim tanto se me dá, Os barcos têm chave, perguntou o homem, Para entrar, não, mas lá estão as arrecadações e os paióis, e a escrivaninha do comandante com o diário de bordo, Ela que se encarregue de tudo, eu vou recrutar a tripulação, disse o homem, e afastou-se.

A mulher da limpeza foi ao escritório do capitão para recolher as chaves, depois entrou no barco, duas coisas lhe valeram aí, a vassoura do palácio e a prevenção contra as gaivotas, ainda não tinha acabado de atravessar a prancha que ligava a amurada ao cais e já as malvadas estavam a precipitar-se sobre ela aos guinchos, furiosas, de goela aberta, como se ali mesmo a quisessem devorar. Não sabiam com quem se metiam. A mulher da limpeza pousou o balde, meteu as chaves no seio, firmou bem os pés na prancha, e, redemoinhando a vassoura como se fosse um espadão dos tempos antigos, fez debandar o bando assassino. Foi só quando entrou no barco que compreendeu a ira das gaivotas, havia ninhos por toda a parte, muitos deles abandonados, outros ainda com ovos, e uns poucos com gaivotinhos de bico aberto, à espera da comida, Pois sim, mas o melhor é mudarem-se daqui, um barco que vai procurar a ilha desconhecida não pode ter este aspecto, como se fosse um galinheiro, disse. Atirou para a água os ninhos vazios, quanto aos outros deixou-os ficar, até ver. Depois arregaçou as mangas e pôs-se a lavar a coberta. Quando acabou a dura tarefa, foi abrir o paiol das velas e procedeu a um exame minucioso do estado das costuras, depois de tanto tempo sem irem ao mar e sem terem de suportar os esticões saudáveis do vento. As velas são os músculos do barco, basta ver como incham quando se esforçam, mas, e isso mesmo sucede aos músculos, se não se lhes dá uso regularmente, abrandam, amolecem, perdem nervo, E as costuras são como os nervos das velas, pensou a mulher da limpeza, contente por estar a aprender tão depressa a arte de marinharia. Achou esgarçadas algumas bainhas, mas contentou-se com assinalá-las, uma vez que para este trabalho não podiam servir a linha e a agulha com que passajava as peúgas dos pajens antigamente, quer dizer, ainda ontem. Quanto aos outros paióis, viu logo que estavam vazios. Que o da pólvora estivesse desmunido, salvo uns pozinhos negros no fundo, que primeiro mais lhe pareceram caganitas de rato, não lhe importou nada, de facto não está escrito em nenhuma lei, pelo menos até onde a sabedoria duma mulher da limpeza é capaz de alcançar, que ir em busca duma ilha desconhecida tenha de ser forçosamente uma empresa de guerra. Já a ralou, e muito, a falta absoluta de munições de boca no paiol respectivo, não por si própria, que estava mais do que acostumada ao mau passadio do palácio, mas por causa do homem a quem deram este barco, não tarda que o sol se ponha, e ele a aparecer-me aí a clamar que tem fome, que é o dito de todos os homens mal entram em casa, como se só eles é que tivessem estômago e sofressem da necessidade de o encher, E se já traz marinheiros para a tripulação, que são uns ogres a comer, então é que não sei como nos iremos governar, disse a mulher da limpeza.

Não valia a pena ter-se preocupado tanto. O sol havia acabado de sumir-se no oceano quando o homem que tinha um barco surgiu no extremo do cais. Trazia um embrulho na mão, porém vinha sozinho e cabisbaixo. A mulher da limpeza foi esperá-lo à prancha, mas antes que ela abrisse a boca para se inteirar de como lhe tinha corrido o resto do dia, ele disse, Está descansada, trago aqui comida para os dois, E os marinheiros, perguntou ela, Não veio nenhum, como podes ver, Mas deixaste-os apalavrados, ao menos, tornou ela a perguntar, Disseram-me que já não há ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, não iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos barcos de carreira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um impossível, como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso, E tu, que lhes respondeste, Que o mar é sempre tenebroso, E não lhes falaste da ilha desconhecida, Como poderia falar-lhes eu duma ilha desconhecida, se não a conheço, Mas tens a certeza de que ela existe, Tanta como a de ser tenebroso o mar, Neste momento, visto daqui, com aquela água cor de jade e o céu como um incêndio, de tenebroso não lhe encontro nada, É uma ilusão tua, também as ilhas às vezes parece que flutuam sobre as águas, e não é verdade, Que pensas fazer, se te falta a tripulação, Ainda não sei, Podíamos ficar a viver aqui, eu oferecia-me para lavar os barcos que vêm à doca, e tu, E eu, Tens com certeza um mester, um ofício, uma profissão, como agora se diz, Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer, Não é a mesma coisa. O incêndio do céu ia esmorecendo, a água arroxeou-se de repente, agora nem a mulher da limpeza duvidaria de que o mar é mesmo tenebroso, pelo menos a certas horas. Disse o homem, Deixemos as filosofias para o filósofo do rei, que para isso é que lhe pagam, agora vamos nós comer, mas a mulher não esteve de acordo, Primeiro, tens de ver o teu barco, só o conheces por fora, Que tal o encontraste, Há algumas bainhas das velas que estão a precisar de reforço, Desceste ao porão, encontraste água aberta, No fundo vê-se alguma, de mistura com o lastro, mas isso parece que é próprio, faz bem ao barco, Como foi que aprendeste essas coisas, Assim, Assim como, Como tu, quando disseste ao capitão do porto que aprenderias a navegar no mar, Ainda não estamos no mar, Mas já estamos na água, Sempre tive a idéia de que para a navegação só há dois mestres verdadeiros, um que é o mar, o outro que é o barco, E o céu, estás a esquecer-te do céu, Sim, claro, o céu, Os ventos, As nuvens, O céu, Sim, o céu.

Em menos de um quarto de hora tinham acabado a volta pelo barco, uma caravela, mesmo transformada, não dá para grandes passeios. É bonita, disse o homem, mas se eu não conseguir arranjar tripulantes suficientes para a manobra, terei de ir dizer ao rei que já não a quero, Perdes o ânimo logo à primeira contrariedade, A primeira contrariedade foi estar à espera do rei três dias, e não desisti, Se não encontrares marinheiros que queiram vir, cá nos arranjaremos os dois, Estás doida, duas pessoas sozinhas não seriam capazes de governar um barco destes, eu teria de estar sempre ao leme, e tu, nem vale a pena estar a explicar-te, é uma loucura, Depois veremos, agora vamos mas é comer. Subiram para o castelo de popa, o homem ainda a protestar contra o que chamara loucura, e, ali, a mulher da limpeza abriu o farnel que ele tinha trazido, um pão, queijo duro, de cabra, azeitonas, uma garrafa de vinho. A lua já estava meio palmo sobre o mar, as sombras da verga e do mastro grande vieram deitar-se-lhes aos pés. É realmente bonita a nossa caravela, disse a mulher, e emendou logo, A tua, a tua caravela, Desconfio que não o será por muito tempo, Navegues ou não navegues com ela, é tua, deu-ta o rei, Pedi-lha para ir procurar uma ilha desconhecida, Mas estas coisas não se fazem do pé para a mão, levam o seu tempo, já o meu avô dizia que quem vai ao mar avia-se em terra, e mais não era ele marinheiro, Sem tripulantes não poderemos navegar, Já o tinhas dito, E há que abastecer o barco das mil coisas necessárias a uma viagem como esta, que não se sabe aonde nos levará, Evidentemente, e depois teremos de esperar que seja a boa estação, e sair com a boa maré, e vir gente ao cais a desejar-nos boa viagem, Estás a rir-te de mim, Nunca me riria de quem me fez sair pela porta das decisões, Desculpa-me, E não tornarei a passar por ela, suceda o que suceder. O luar iluminava em cheio a cara da mulher da limpeza, É bonita, realmente é bonita, pensou o homem, que desta vez não estava a referir-se à caravela. A mulher, essa, não pensou nada, devia ter pensado tudo durante aqueles três dias, quando entreabria de vez em quando a porta para ver se aquele ainda continuava lá fora, à espera. Não sobrou migalha de pão ou de queijo, nem gota de vinho, os caroços das azeitonas foram atirados para a água, o chão está tão limpo como ficara quando a mulher da limpeza lhe passou por cima o último esfregão. A sereia de um paquete que saía para o mar soltou um ronco potente, como deviam ter sido os do leviatã, e a mulher disse, Quando for a nossa vez faremos menos barulho. Apesar de estarem no interior da doca, a água ondulou um pouco à passagem do paquete, e o homem disse, Mas baloiçaremos muito mais. Riram os dois, depois ficaram calados, passado um bocado um deles opinou que o melhor seria irem dormir, Não é que eu tenha muito sono, e o outro concordou, Nem eu, depois calaram-se outra vez, a lua subiu e continuou a subir, em certa altura a mulher disse, Há beliches lá em baixo, o homem disse, Sim, e foi então que se levantaram, que desceram à coberta, aí a mulher disse, Até amanhã, eu vou para este lado, e o homem respondeu, E eu vou para este, até amanhã, não disseram bombordo nem estibordo, decerto por estarem ainda a praticar na arte. A mulher voltou atrás, Tinha-me esquecido, tirou do bolso do avental dois cotos de vela, Encontrei-os quando andava a limpar, o que não tenho é fósforos, Eu tenho, disse o homem. Ela segurou as velas, uma em cada mão, ele acendeu um fósforo, depois, abrigando a chama sob a cúpula dos dedos curvados, levou-a com todo o cuidado aos velhos pavios, a luz pegou, cresceu lentamente como faz o luar, banhou a cara da mulher da limpeza, nem seria preciso dizer o que ele pensou, É bonita, mas o que ela pensou, sim, Vê-se bem que só tem olhos para a ilha desconhecida, aqui está como as pessoas se enganam nos sentidos do olhar, sobretudo ao princípio. Ela entregou-lhe uma vela, disse, Até amanhã, dorme bem, ele quis dizer o mesmo doutra maneira, Que tenhas sonhos felizes, foi a frase que lhe saiu, daqui a pouco, quando lá estiver em baixo, deitado no seu beliche, vir-lhe-ão à ideia outras frases, mais espirituosas, sobretudo mais insinuantes, como se espera que sejam as de um homem quando está a sós com uma mulher. Perguntava-se se já dormiria, se teria tardado a entrar no sono, depois imaginou que andava à procura dela e não a encontrava em nenhum sítio, que estavam perdidos os dois num barco enorme, o sonho é um prestidigitador hábil, muda as proporções das coisas e as suas distâncias, separa ás pessoas, e elas estão juntas, reúne-as, e quase não se vêem uma à outra, a mulher dorme a poucos metros e ele não soube como alcançá-la, quando é tão fácil ir de bombordo a estibordo.

Tinha-lhe desejado felizes sonhos, mas foi ele quem levou toda a noite a sonhar. Sonhou que a sua caravela ia no mar alto, com as três velas triangulares gloriosamente enfunadas, abrindo caminho sobre as ondas, enquanto ele manejava a roda do leme e a tripulação descansava à sombra. Não percebia como podiam ali estar os marinheiros que no porto e na cidade se tinham recusado a embarcar com ele para ir à procura da ilha desconhecida, provavelmente arrependeram-se da grosseira ironia com que o haviam tratado. Via animais espalhados pela coberta, patos, coelhos, galinhas, o habitual da criação doméstica, debicando os grãos de milho ou roendo as folhas de couve que um marinheiro lhes atirava, não se lembrava de quando os tinha trazido para o barco, fosse como fosse era natural que ali estivessem, imaginemos que a ilha desconhecida é, como tantas vezes o foi no passado, uma ilha deserta, o melhor será jogar pelo seguro, todos sabemos que abrir a porta da coelheira e agarrar um coelho pelas orelhas sempre foi mais fácil do que persegui-lo por montes e vales. Do fundo do porão veio agora um coro de relinchos de cavalos, de mugidos de bois, de zurros de asnos, as vozes dos nobres animais necessários para o trabalho pesado, e como foi que vieram eles, como podem estar numa caravela onde a tripulação humana mal cabe, de súbito o vento deu uma guinada, a vela maior bateu e ondulou, por trás dela estava o que antes não se vira, um grupo de mulheres que mesmo sem as contar se adivinha serem tantas quantos os marinheiros, ocupam-se nas suas coisas de mulheres, ainda não chegou o tempo de se ocuparem doutras, está claro que isto só pode ser um sonho, na vida real nunca se viajou assim. O homem do leme buscou com os olhos a mulher da limpeza e não a viu, Talvez esteja no beliche de estibordo, a descansar da lavagem da coberta, pensou, mas foi um pensar fingido, porque ele bem sabe, embora também não saiba como o sabe, que ela à última hora não quis vir, que saltou para o cais, dizendo de lá, Adeus, adeus, já que só tens olhos para a ilha desconhecida, vou-me embora, e não era verdade, agora mesmo andam os olhos dele a procurá-la e não a encontram. Neste momento o céu cobriu-se e começou a chover, e, tendo chovido, principiaram a brotar inúmeras plantas das fileiras de sacos de terra alinhadas ao longo da amurada, não estão ali porque se suspeite que não haja terra bastante na ilha desconhecida, mas porque assim se ganhará tempo, no dia em que lá chegarmos só teremos que transplantar as árvores de fruto, semear os grãos das pequenas searas que vão amadurecer aqui, enfeitar os canteiros com as flores que desabrocharão destes botões. O homem do leme pergunta aos marinheiros que descansam na coberta se avistam alguma ilha desabitada, e eles respondem que não vêem nem de umas nem das outras, mas que estão a pensar em desembarcar na primeira terra povoada que lhes apareça, desde que haja lá um porto onde fundear, uma taberna onde beber e uma cama onde folgar, que aqui não se pode, com toda esta gente junta. E a ilha desconhecida, perguntou o homem do leme, A ilha desconhecida é coisa que não existe, não passa duma ideia da tua cabeça, os geógrafos do rei foram ver nos mapas e declararam que ilhas por conhecer é coisa que se acabou desde há muito tempo, Devíeis ter ficado na cidade, em lugar de vir atrapalhar-me a navegação, Andávamos à procura de um sítio melhor para viver e resolvemos aproveitar a tua viagem, Não sois marinheiros, Nunca o fomos, Sozinho, não serei capaz de governar o barco, Pensasses nisso antes de ir pedi-lo ao rei, o mar não ensina a navegar. Então o homem do leme viu uma terra ao longe e quis passar adiante, fazer de conta que ela era a miragem de uma outra terra, uma imagem que tivesse vindo do outro lado do mundo pelo espaço, mas os homens que nunca haviam sido marinheiros protestaram, disseram que ali mesmo é que queriam desembarcar, Esta é uma ilha do mapa, gritaram, matar-te-emos se não nos levares lá. Então, por si mesma, a caravela virou a proa em direcção à terra, entrou no porto e foi encostar à muralha da doca, Podeis ir-vos, disse o homem do leme, acto contínuo saíram em correnteza, primeiro as mulheres, depois os homens, mas não foram sozinhos, levaram com eles os patos, os coelhos e as galinhas, levaram os bois, os burros e os cavalos, e até as gaivotas, uma após outra, levantaram voo e se foram do barco transportando no bico os seus gaivotinhos, proeza que não tinha sido cometida antes, mas há sempre uma vez. O homem do leme assistiu à debandada em silêncio, não fez nada para reter os que o abandonavam, ao menos tinham-no deixado com as árvores, os trigos e as flores, com as trepadeiras que se enrolavam nos mastros e pendiam da amurada como festões. Por causa do atropelo da saída haviam-se rompido e derramado os sacos de terra, de modo que a coberta era toda ela como um campo lavrado e semeado, só falta que venha um pouco mais de chuva para que seja um bom ano agrícola. Desde que a viagem à ilha desconhecida começou que não se vê o homem do leme comer, deve ser porque está a sonhar, apenas a sonhar, e se no sonho lhe apetecesse um pedaço de pão ou uma maçã, seria um puro invento, nada mais. As raízes das árvores já estão penetrando no cavername, não tarda que estas velas içadas deixem de ser precisas, bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela ao seu destino. É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber-se como, começaram a cantar pássaros, deviam estar escondidos por aí e de repente decidiram sair à luz, talvez porque a seara já esteja madura e é preciso ceifá-la. Então o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.

O Cavalo que Bebia Cerveja, por Guimarães Rosa

O Cavalo que Bebia Cerveja, por Guimarães Rosa

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, terça, 21 de junho de 2011 às 02:47

Essa chácara do homem ficava meio ocultada, escurecida pelas árvores, que nunca se viu plantar tamanhas tantas em roda de uma casa. Era homem estrangeiro. De minha mãe ouvi como, no ano da espanhola, ele chegou, acautelado e espantado, para adquirir aquele lugar de todo defendimento; e a morada, donde de qualquer janela alcançasse de vigiar a distância, mãos na espingarda; nesse tempo, não sendo ainda tão gordo, de fazer nojo. Falavam que comia a quanta imundície: caramujo, até rã, com as braçadas de alfaces, embebidas num balde de água. Ver, que almoçava e jantava, da parte de fora, sentado na soleira da porta, o balde entre suas grossas pernas, no chão, mais as alfaces; tirante que, a carne, essa, legítima de vaca, cozinhada. Demais gastasse era com cerveja, que não bebia à vista da gente. Eu passava por lá, ele me pedia: — "Irivalíni, bisonha outra garrafa, é para o cavalo..." Não gosto de perguntar, não achava graça. Às vezes eu não trazia, às vezes trazia, e ele me indenizava o dinheiro, me gratificando. Tudo nele me dava raiva. Não aprendia a referir meu nome direito. Desfeita ou ofensa, não sou o de perdoar — a nenhum de nenhuma.

Não avistei mais o meu Patrão. Soube que ele morreu, quando em testamento deixou a chácara para mim. Mandei erguer sepulturas, dizer as missas, por ele, pelo irmão, por minha mãe. Mandei vender o lugar, mas, primeiro, cortarem abaixo as árvores, e enterrar no campo o trem, que se achava, naquele referido quarto. Lá nunca voltei. Não, que não me esqueço daquele dado dia — o que foi uma compaixão. Nós dois, e as muitas, muitas garrafas, na hora cismei que um outro ainda vinha sobrevir, por detrás da gente, também, por sua parte: o alazão façalvo; ou o branco enorme, de São Jorge; ou o irmão, infeliz medonhamente. Ilusão, que foi, nenhum ali não estava. Eu, Reivalino Belarmino, capisquei. Vim bebendo as garrafas todas, que restavam, faço que fui eu que tomei consumida a cerveja toda daquela casa, para fecho de engano. Agora, eu queria tomar rumo, ir puxando, ali não me servia mais, na chácara estúrdia e desditosa, com o escuro das árvores, tão em volta. Seo Giovânio estava da banda de fora, conforme seu costume de tantos anos. Mais achacoso, envelhecido, subitamente, no trespassamento da manifesta dor. Mas comia, sua carne, as cabeças de alfaces, no balde, fungava. — "Irivalíni... que esta vida... bisonha. Caspité?" — perguntava, em todo tom de canto. Ele avermelhadamente me olhava. — "Cá eu pisco..." — respondi. Não por nojo, não dei um abraço nele, por vergonha, para não ter também as vistas lagrimadas. E, então, ele fez a mais extravagada coisa: abriu cerveja, a que quanta se espumejasse. — "Andamos, Irivalíni, contadino, bambino?" — propôs. Eu quis. Aos copos, aos vintes e trintas, eu ia por aquela cerveja, toda. Sereno, ele me pediu para levar comigo, no ir-m'embora, o cavalo — alazão bebedor — e aquele tristoso cachorro magro, Mussulino. Sendo que foi de repente. Seo Giovânio abriu de em par a casa. Me chamou: na sala, no meio do chão, jazia um corpo de homem, debaixo de lençol. — "Josepe, meu irmão"... - ele me disse, embargado. Quis o padre, quis o sino da igreja para badalar as vezes dos três dobres, para o tristemente. Ninguém tinha sabido nunca o qual irmão, o que se fechava escondido, em fuga da comunicação das pessoas. Aquele enterro foi muito conceituado. Seo Giovânio pudesse se gabar, ante todos. Só que, antes, seo Priscílio chegou, figuro que os de fora a ele tinham prometido dinheiro; exigiu que se levantasse o lençol, para examinar. Mas, aí, se viu só o horror, de nós todos, com caridade de olhos: o morto não tinha cara, a bem dizer — só um buracão, enorme, cicatrizado antigo, medonho, sem nariz, sem faces — a gente devassava alvos ossos, o começo da goela, gargomilhos, golas. — "Que esta é a guerra..." — seu Giovânio explicou — boca de bobo, que se esqueceu de fechar, toda doçuras. Seo Priscílio, e os de fora, estivessem agora purgados de curiosidades. Mas eu não tirava o sentido disto: e os outros quartos, da casa, o atrás de portas? Deviam ter dado a busca por inteiro, nela, de uma vez. Seja que eu não ia lembrar esse rumo a eles, não sou mestre de quinaus. Seo Giovânio conversava mais comigo, banzativo: — "Irivalíni, eco, a vida é bruta, os homens são cativos..." Eu não queria perguntar a respeito do cavalo branco, frioleiras, devia de ter sido o dele, na guerra, de suma estimação. — "Mas, Irivalíni, nós gostamos demais da vida..." Queria que eu comesse com ele, mas o nariz dele pingava, o ranho daquele monco, fungando, em mal assôo, e ele fedia a charuto, por todo lado. Coisa terrível, assistir aquele homem, no não dizer suas lástimas. Saí, então, fui no seo Priscílio, falei: que eu não queria saber de nada, daqueles, os de fora, de coscuvilho, nem jogar com o pau de dois bicos! Se tornassem a vir, eu corria com eles, despauterava, escaramuçava — alto aí! — isto aqui é Brasil, eles também eram estrangeiros. Sou para sacar faca e arma. Seo Priscílio sabia. Só não soubesse das surpresas. Sobre o tanto, quando os de fora tornaram a vir, eu falei, o que eu especulava: que alguma outra razão devia de haver, nos quartos da casa. Seo Priscílio, dessa vez, veio com um soldado. Só pronunciou: que queria revistar os cômodos, pela justiça! Seo Giovânio, em pé de paz, acendeu outro charuto, ele estava sempre cordo. Abriu a casa, para seo Priscílio entrar, o soldado; eu, também. Os quartos? Foi direto a um, que estava duro de trancado. O do pasmoso: que, ali dentro, enorme, só tinha o singular — isto é, a coisa a não existir! — um cavalão branco, empalhado. Tão perfeito, a cara quadrada, que nem um de brinquedo, de menino; reclaro, branquinho, limpo, crinado e ancudo, alto feito um de igreja — cavalo de São Jorge. Como podiam ter trazido aquilo, ou mandado vir, e entrado ali acondicionado? Seo Priscílio se desenxaviu, sobre toda a admiração. Apalpou ainda o cavalo, muito, não achando nele oco nem contento. Seo Giovânio, no que ficou sozinho comigo, mascou o charuto: — "Irivalíni, pecado que nós dois não gostemos de cerveja, hem?" Eu aprovei. Tive a vontade de contar a ele o que por detrás estava se passando. Eu estava por ali, fingindo não ser nem saber, de mão-posta. Seo Priscílio apareceu, falou com seo Giovânio: se que estórias seriam aquelas, de um cavalo beber cerveja? Apurava com ele, apertava. Seo Giovânio permanecia muito cansado, sacudia devagar a cabeça, fungando o escorrido do nariz, até o toco do charuto; mas não fez mau rosto ao outro. Passou muito a mão na testa: — "Lei, guer ver?" Saiu, para surgir com um cesto com as garrafas cheias, e uma gamela, nela despejou tudo, às espumas. Me mandou buscar o cavalo: o alazão canela-clara, bela-face. O qual — era de se dar a fé? — já avançou, avispado, de atreitas orelhas, arredondando as ventas, se lambendo: e grosso bebeu o rumor daquilo, gostado, até o fundo; a gente vendo que ele já era manhudo, cevado naquilo! Quando era que tinha sido ensinado, possível? Pois, o cavalo ainda queria mais e mais cerveja. Seo Priscílio se vexava, no que agradeceu e se foi. Meu patrão assoviou de esguicho, olhou para mim: "Irivalíni, que estes tempos vão cambiando mal. Não laxa as armas!" Aprovei. Sorri de que ele tivesse as todas manhas e patranhas. Mesmo assim, meio me desgostava. Seo Priscílio me chamou, justo, outra vez, naquela semana. Os de fora estavam lá, de colondria, só entrei a meio na conversa; um deles dois, escutei que trabalhava para o "Consulado". Mas contei tudo, ou tanto, por vingança, com muito caso. Os de fora, então, instaram com seo Priscílio. Eles queriam permanecer no oculto, seo Priscílio devia de ir sozinho. Mais me pagaram. Demais que, uns dias depois, se soube de ouvidos, tarde da noite, diferentes vezes, galopes no ermo da várzea, de cavaleiro saído da porteira da chácara. Pudesse ser? Então, o homem tanto me enganava, de formar uma fantasmagoria, de lobisomem. Só aquela divagação, que eu não acabava de entender, para dar razão de alguma coisa: se ele tivesse, mesmo, um estranho cavalo, sempre escondido ali dentro, no escuro da casa? Perigoso, para mim? — ah, ah. Pelo que, vá, em sua mocidade, podendo ter sido homem. Mas, agora, em pança, regalão, remanchão, somente quisesse a cerveja — para o cavalo. Desgraçado, dele. Não que eu me queixasse, por mim, que nunca apreciei cerveja; gostasse, comprava, bebia, ou pedia, ele mesmo me dava. Ele falava que também não gostava, não. De verdade. Consumia só a quantidade de alfaces, com carne, boquicheio, enjooso, mediante muito azeite, lambia que espumava. Por derradeiro, estava meio estramontado, soubesse da vinda dos de fora? Marca de escravo em perna dele, não observei, nem fiz por isso. Sou lá serviçal de meirinho-mor, desses, excogitados, de tantos visares? Mas eu queria jeito de entender, nem que por uma fresta, aquela casa, debaixo de chaves, espreitada. Os cachorros já estando mansos amigáveis. Mas, parece que seo Giovânio desconfiou. Pois, por minha hora de surpresa, me chamou, abriu a porta. Lá dentro, até fedia a coisa sempre em tampa, não dava bom ar. A sala, grande, vazia de qualquer amobiliado, só para espaços. Ele, nem que de propósito, me deixou olhar à minha conta, andou comigo, por diversos cômodos, me satisfiz. Ah, mas, depois, cá comigo, ganhei conselho, ao fim da idéia: e os quartos? Havia muitos desses, eu não tinha entrado em todos, resguardados. Por detrás de alguma daquelas portas, pressenti bafo de presença — só mais tarde? Ah, o carcamano queria se birbar de esperto; e eu não era mais? Sonsos os dois homens, vindos da capital. Quem para eles me chamou, foi o seo Priscílio, subdelegado. Me disse: — "Reivalino Belarmino, estes aqui são de autoridade, por ponto de confiança." E os de fora, me pegando à parte, puxaram por mim, às muitas perguntas. Tudo, para tirar tradição do homem, queriam saber, em pautas ninharias. Tolerei que sim; mas nada não fornecendo. Quem sou eu, quati, para cachorro me latir? Só cismei escrúpulos, pelas más caras desses, sujeitos embuçados, salafrados também. Mas, me pagaram, o bom quanto. O principal deles dois, o de mão no queixo, me encarregou: que, meu patrão, sendo homem muito perigoso, se ele vivia mesmo sozinho? E que eu reparasse, na primeira ocasião, se ele não tinha numa perna, embaixo, sinal velho de coleira, argolão de ferro, de criminoso fugido de prisão. Pois sim, piei prometi. Do que mais estranhei, foram esses encobrimentos. Na casa, grande, antiga, trancada de noite e de dia, não se entrava; nem para comer, nem para cozinhar. Tudo se passava da banda de cá das portas. Ele mesmo, figuro que raras vezes por lá se introduzia, a não ser para dormir, ou para guardar a cerveja — ah, ah, ah — a que era para o cavalo. E eu, comigo: — "Tu espera, porco, para se, mais dia menos dia, eu não estou bem aí, no haja o que há!" Seja que, por essa altura, eu devia ter procurado as corretas pessoas, narrar os absurdos, pedindo providências, soprar minhas dúvidas. O que fácil não fiz. Sou de nem palavras. Mas, por aí, também, apareceram aqueles — os de fora. Isto é, minha mãe ele estimava, tratava com as benevolências. Comigo, não adiantava — não dispunha de minha ira. Nem quando minha mãe grave adoeceu, e ele ofertou dinheiro, para os remédios. Aceitei; quem é que vive de não? Mas não agradeci. Decerto ele tinha remorso, de ser estrangeiro e rico. E, mesmo, não adiantou, a santa de minha mãe se foi para as escuridões, o danado do homem se dando de pagar o enterro. Depois, indagou se eu queria vir trabalhar para ele. Sofismei, o quê. Sabia que sou sem temor, em meus altos, e que enfrento uns e outros, no lugar a gente pouco me encarava. Só se fosse para ter a minha proteção, dia e noite, contra os issos e vindiços. Tanto, que não me deu nem meio serviço por cumprir, senão que eu era para burliquear por lá, contanto que com as armas. Mas, as compras para ele, eu fazia. — "Cerveja, Irivalíni. É para o cavalo..." — o que dizia, a sério, naquela língua de bater ovos. Tomara ele me xingasse! Aquele homem ainda havia de me ver. Minha mãe e eu sendo das poucas pessoas que atravessávamos por diante da porteira, para pegar a pinguela do riacho. — "Dei'stá, coitado, penou na guerra..." — minha mãe explicando. Ele se rodeava de diversos cachorros, graúdos, para vigiarem a chácara. De um, mesmo não gostasse, a gente via, o bicho em sustos, antipático — o menos bem tratado; e que fazia, ainda assim, por não se arredar de ao pé dele, estava, a toda a hora, de desprezo, chamando o endiabrado do cão: por nome "Mussulino". Eu remoia o rancor: de que, um homem desses, cogotudo, panturro, rouco de catarros, estrangeiro às náuseas — se era justo que possuísse o dinheiro e estado, vindo comprar terra cristã, sem honrar a pobreza dos outros, e encomendando dúzias de cerveja, para pronunciar a feia fala. Cerveja? Pelo fato, tivesse seus cavalos, os quatro ou três, sempre descansados, neles não amontava, nem agüentasse montar. Nem caminhar, quase, não conseguia. Cabrão! Parava pitando, uns charutos pequenos, catinguentos, muito mascados e babados. Merecia um bom corrigimento. Sujeito sistemático, com sua casa fechada, pensasse que todo o mundo era ladrão.

Me alugo para sonhar, por Gabriel García Márquez

Me alugo para sonhar, por Gabriel García Márquez

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, terça, 21 de junho de 2011 às 02:34

Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força suficiente para esmigalhar a vidraça.

— Sonhei com essa mulher que sonha — disse. Às três, nos separamos dela para acompanhar Neruda à sua sesta sagrada. Foi feita em nossa casa, depois de uns preparativos solenes que de certa forma recordavam a cerimônia do chá no Japão. Era preciso abrir umas janelas e fechar outras para que houvesse o grau de calor exato e uma certa classe de luz em certa direção, e um silêncio absoluto. Neruda dormiu no ato, e despertou dez minutos depois, como as crianças, quando menos esperávamos. Apareceu na sala restaurado e com o monograma do travesseiro impresso na face. — Mesmo que seus sonhos sejam falsos, jamais voltarei — disse a ela. — Por via das dúvidas. Só então percebi que treze anos haviam transcorrido desde que nos conhecemos. — Aliás — disse ela —, você já pode voltar para Viena. Frau Frida soltou uma gargalhada irresistível. "Você continua o atrevido de sempre", disse. E não falou mais, porque o resto do grupo havia parado para esperar que Neruda acabasse de conversar em gíria chilena com os papagaios da Rambla dos Pássaros. Quando retomamos a conversa, Frau Frida havia mudado de assunto. Depois do almoço, no inevitável passeio pelas Ramblas, fiquei para trás de propósito, com Frau Frida, para poder refrescar nossas lembranças sem ouvidos alheios. Ela me contou que havia vendido suas propriedades na Áustria, e vivia aposentada no Porto, Portugal, numa casa que descreveu como sendo um castelo falso sobre uma colina de onde se via todo o oceano até as Américas. Mesmo sem que ela tenha dito, em sua conversa ficava claro que de sonho em sonho havia terminado por se apoderar da fortuna de seus inefáveis patrões de Viena. Não me impressionou, porém, pois sempre havia pensado que seus sonhos não eram nada além de uma artimanha para viver. E disse isso a ela. — Só a poesia é clarividente — disse. Viajava de Nápoles no mesmo barco que o casal Neruda, mas não tinham se visto a bordo. Convidamos para mulher a tomar café em nossa mesa, e a induzi a falar de seus sonhos para surpreender o poeta. Ele não deu confiança, pois insistiu desde o princípio que não acreditava em adivinhações de sonhos. Espiei por cima de seu ombro, e era verdade. Às suas costas, três mesas atrás, uma mulher impávida com um antiquado chapéu de feltro e um cachecol roxo, mastigava devagar com os olhos fixos nele. Eu a reconheci no ato. Estava envelhecida e gorda, mas era ela, com o anel de serpente no dedo indicador. — Tem alguém atrás de mim que não pára de me olhar. Não conheci ninguém mais parecido à idéia que a gente tem de um papa renascentista: glutão e refinado. Mesmo contra a sua vontade, sempre presidia a mesa. Matilde, sua esposa, punha nele um babador que mais parecia de barbearia que de restaurante, mas era a única maneira de impedir que se banhasse nos molhos. Aquele dia, no Carvalleiras foi exemplar. Comeu três lagostas inteiras, esquartejando-as com mestria de cirurgião, e ao mesmo tempo devorava com os olhos os pratos de todos, e ia provando um pouco de cada um, com um deleite que contagiava o desejo de comer: as amêijoas da Galícia, os perceves do Cantábrico, os lagostins de Alicante, as espardenyas da Costa Brava. Enquanto isso, como os franceses, só falava de outras delícias da cozinha, e em especial dos mariscos pré-históricos do Chile que levava no coração. De repente parou de comer, afinou suas antenas de siri, e me disse em voz muito baixa: Antes do desastre de Havana havia visto Frau Frida em Barcelona, de maneira tão inesperada e casual que me pareceu misteriosa. Foi no dia em que Pablo Neruda pisou terra espanhola pela primeira vez desde a Guerra Civil, na escala de uma lenta viagem pelo mar até Valparaíso. Passou conosco uma manhã de caça nas livrarias de livros usados, e na Porter comprou um livro antigo, desencadernado e murcho, pelo qual pagou o que seria seu salário de dois meses no consulado de Rangum. Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava a vida. Sua convicção era tão real que naquela mesma noite ela me embarcou no último trem para Roma. Eu fiquei tão sugestionado que desde então me considerei sobrevivente de um desastre que nunca conheci. Ainda não voltei a Viena. — Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei com você — disse ela. — Você tem que ir embora já e não voltar a Viena nos próximos cinco anos. Fiquei em Viena mais de um mês, compartilhando os apertos dos estudantes, enquanto esperava um dinheiro que não chegou nunca. As visitas imprevistas e generosas de Frau Frida na taberna eram então como festas em nosso regime de penúrias. Numa daquelas noites, na euforia da cerveja, sussurrou ao meu ouvido com uma convicção que não permitia nenhuma perda de tempo. Fez isso bem e por muito tempo, principalmente nos anos da guerra, quando a realidade foi mais sinistra que os pesadelos. Só ela podia decidir na hora do café da manhã o que cada um deveria fazer naquele dia, e como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram sendo a única autoridade na casa. Seu domínio sobre a família foi absoluto: até mesmo o suspiro mais tênue dependia da sua ordem. Naqueles dias em que estive em Viena o dono da casa havia acabado de morrer, e tivera a elegância de legar a ela uma parte de suas rendas, com a única condição de que continuasse sonhando para a família até o fim de seus sonhos. Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse ser um ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos de Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou que viveria com prazer, e quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela disse apenas a verdade: "Sonho". Só precisou de uma breve explicação à dona da casa para ser aceita, com um salário que dava para as despesas miúdas, mas com um bom quarto e três refeições por dia. Principalmente o café da manhã, que era o momento em que a família sentava-se para conhecer o destino imediato de cada um de seus membros: o pai, que era um financista refinado; a mãe, uma mulher alegre e apaixonada por música romântica de câmara9 e duas crianças de onze e nove anos. Todos eram religiosos, e portanto propensos às superstições arcaicas, e receberam maravilhados Frau Frida com o compromisso único de decifrar o destino diário da família através dos sonhos. A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada a um menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas dominicais. A mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da filha, fez a advertência ser respeitada com mão de ferro. Mas ao seu primeiro descuido o menino engasgou com uma bolinha de caramelo que comia escondido, e não foi possível salvá-lo. — O que esse sonho significa — disse — não é que ele vai se afogar, mas que não deve comer doces. Na realidade, era seu único ofício. Havia sido a terceira dos onze filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes premonitórias. Aos sete anos sonhou que um de seus irmãos era arrastado por uma correnteza. A mãe, por pura superstição religiosa, proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais gostava, tomar banho no riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de vaticínios. — Eu me alugo para sonhar. Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição geográfica entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e da espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente mais adequado para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo na taberna de estudantes da esquina por pura fidelidade às suas origens, pois tinha recursos de sobra para comprá-la à vista, com clientela e tudo. Nunca disse o seu verdadeiro nome, pois sempre a conhecemos com o trava-língua germânico que os estudantes latinos de Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre: Era um detalhe decisivo, porque temi que fosse uma mulher inesquecível cujo verdadeiro nome não soube jamais, que usava um anel igual no indicador direito, o que era mais insólito ainda naquele tempo. Eu a havia conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas cozidas e bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos. Eu havia chegado de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha impressão imediata por seu imenso peito de soprano, suas lânguidas caudas de raposa na gola do casaco e aquele anel egípcio em forma de serpente. Achei que era a única austríaca ao longo daquela mesona de madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com sotaque de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar música e canto. Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos, pois nunca deve ter sido bela e havia começado a envelhecer antes do tempo. Em compensação, era um ser humano encantador. E também um dos mais temíveis. Os alegres voluntários cubanos, com a ajuda dos bombeiros, recolheram os destroços em menos de seis horas, trancaram a porta que dava para o mar e habilitaram outra, e tudo tornou a ficar em ordem. Pela manhã, ninguém ainda havia cuidado do automóvel pregado no muro, pois pensava-se que era um dos estacionados na calçada. Mas quando o reboque tirou-o da parede descobriram o cadáver de uma mulher preso no assento do motorista pelo cinto de segurança. O golpe foi tão brutal que não sobrou nenhum osso inteiro. Tinha o rosto desfigurado, os sapatos descosturados e a roupa em farrapos, e um anel de ouro em forma de serpente com olhos de esmeraldas. A polícia afirmou que era a governanta dos novos embaixadores de Portugal. Assim era: tinha chegado com eles a Havana quinze dias antes, e havia saído naquela manhã para fazer compras dirigindo um automóvel novo. Seu nome não me disse nada quando li a notícia nos jornais, mas fiquei intrigado por causa do anel em forma de serpente e com olhos de esmeraldas. Não consegui saber, porém, em que dedo o usava.

Matilde quis que ele contasse o sonho.

— Nada — respondeu ele, com certo desencanto. — Sonhava. — Em termos concretos — perguntei no fim —, o que ela fazia? Não tornei a vê-la nem a me perguntar por ela até que soube do anel em forma de cobra da mulher que morreu no naufrágio do Hotel Riviera. Portanto não resisti à tentação de fazer algumas perguntas ao embaixador português quando coincidimos, meses depois, em uma recepção diplomática. O embaixador me falou dela com um grande entusiasmo e uma enorme admiração. "O senhor não imagina como ela era extraordinária", me disse. "O senhor não resistiria à tentação de escrever um conto sobre ela". E prosseguiu no mesmo tom, com detalhes surpreendentes, mas sem uma pista que me permitisse uma conclusão final. — O que você quer? Às vezes, entre tantos sonhos, infiltra-se algum que não tem nada a ver com a vida real. — Sonhei que ele estava sonhando comigo disse, e minha cara de assombro a espantou. Assombrado, pedi que me contasse o sonho. — Sonhei com o poeta — nos disse. Assim que subiu a bordo, às seis da tarde, Neruda despediu-se de nós, sentou-se em uma mesa afastada, e começou a escrever versos fluidos com a caneta de tinta verde com que desenhava flores e peixes e pássaros nas dedicatórias de seus livros. À primeira advertência do navio buscamos Frau Frida, e enfim a encontramos no convés de turistas quando já íamos embora sem nos despedir. Também ela acabava de despertar da sesta. — Se não estiver, ele vai escrever algum dia — respondi. — Será um de seus labirintos. — Está escrito? Ele me olhou desencantado. — Isso é coisa de Borges — comentei. — Sonhei que ela estava sonhando comigo disse ele.

Poemas de Amor de Bertold Brecht - Raridades de um poeta militante comunista

RECORDAÇÃO DE MARIE A., por Bertold Brecht

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, terça, 21 de junho de 2011 às 00:24

Naquele dia, num mês azul de setembro

Em silêncio, à sombra da ameixeira

Eu a tomei nos braços, amor pálido e

Quieto, como um sonho formoso.

E acima de nós, no belo céu do verão

Havia uma nuvem, que olhei longamente

Era bem alva, estava bem no alto

Ao olhar novamente, desapareceu.

Desde então muitas luas passaram

Mostrando no céu seu alvor

As ameixeiras foram talvez cortadas

E se me perguntas para onde foi o amor

Respondo: Não consigo lembrar.

Mas sim, sei o que queres dizer

Suas feições, porém, para sempre se foram

Sei apenas que naquele dia a beijei.

E mesmo o beijo, já o teria esquecido

Não fosse aquela nuvem no céu

Dela sei e sempre saberei:

Era bem alva, estava bem no alto.

As ameixeiras talvez ainda cresçam

E ela agora deve ter muitos filhos

Mas aquela nuvem cresceu alguns minutos

Ao olhar novamente, desapareceu.

MARIA SEJAS LOUVADA, por Bertold Brecht

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, terça, 21 de junho de 2011 às 00:48

Maria sejas louvada

Como és tão apertada

Uma virgindade assim

É coisa demais p’ra mim.

Seja como for o sémen

Sempre o derramo expedito:

Ao fim dum tempo infinito

Muito antes do amen.

Maria sejas louvada

Tua virgindade encruada

‘Inda me pões fora de mim.

Porque és tão fiel assim?

Por que devo eu, que dialho

Só porque esperaste tanto

Logo eu, o teu encanto

Em vez doutro ter trabalho?

(tradução de Ardilio Correia)

CANÇÃO DO SIM E DO NÃO (Ópera dos 3 Vinténs), por Bertold Brecht

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, terça, 21 de junho de 2011 às 00:52

1.

Houve um tempo em que acreditava, quando ainda era inocente,

e o fui já faz tempo igual a você:

quiçá também alguém se chegue a mim

e então tenho que saber o que fazer.

E se tem dinheiro

e se é amável

e seu colarinho está limpo também de segunda a sexta

e se sabe o que merece uma senhora

então direi “Não”.

Há que se manter a cabeça bem alta

e ficar assim como se não se passara nada.

Certo que a lua brilhou toda a noite,

certo que a barca se desatou da margem,

mas nada mais pôde acontecer.

Sim, não se pode entregar-se simplesmente,

sim, há que ser fria e sem coração.

Sim, tantas coisas poderiam acontecer,

ai, a única resposta possível: Não.

2.

O primeiro que veio foi um homem de Kent

que era como um homem deve ser.

O segundo tinha três barcos no porto

e o terceiro estava louco por mim.

E ao possuir dinheiro

e ao ser amável

e ao levar os colarinhos limpos inclusive de segunda a sexta

e ao saber o que merece uma senhora,

lhes disse a todos: “Não”.

Mantive a cabeça bem alta

e fiquei como se não se passara nada.

Certo que a lua brilhou toda a noite,

certo que a barca se desatou da margem,

Sim, não se pode entregar-se simplesmente,

sim, há que ser fria e sem coração.

Sim, tantas coisas poderiam acontecer,

ai, a única resposta possível: Não.

3.

No entanto, um belo dia, e era um dia azul,

chegou um que não me pediu nada

e pendurou seu chapéu num prego de meu quarto

e eu já não sabia o que fazia.

E mesmo sem dinheiro

e ainda que pouco amável

e que seu colarinho não estivesse limpo nem sequer ao domingo

e nem mesmo soubesse o que merece uma senhora,

a ele não disse: “Não”.

Não mantive a cabeça bem alta

e não fiquei como se não se passara nada.

Ai, a lua brilhou toda a noite,

e a barca permaneceu amarrada à margem,

e não podia ser de outra forma!

Sim, não há nada além do que entregar-se simplesmente,

sim, não se pode permanecer fria nem sem coração.

Ai, tiveram que se passar tantas coisas,

sim, não pôde haver nenhum Não.

O Silêncio das Sereias, por Franz Kafka

O Silêncio das Sereias, por Franz Kafka

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, segunda, 20 de junho de 2011 às 17:22

Prova de que até os meios insuficientes – infantis mesmo – podem servir à salvação:

Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente – e desde sempre – todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos.

As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante – que tudo arrasta consigo – não há na terra o que resista.

E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses – que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes – as fez esquecer de todo e qualquer canto.

Ulisses no entanto – se é que se pode exprimir assim – não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semiabertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele. Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.

Mas elas – mais belas do que nunca – esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses. Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou delas.

De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido – embora isso não possa ser captado pela razão humana – que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito.


Bar ruim é Lindo, por Antonio Prata

Bar ruim é Lindo, por Antonio Prata

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, domingo, 19 de junho de 2011 às 18:05

Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso frequento bares meio

ruins.

Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de esquerda, nos

julgamos a vanguarda do proletariado, há mais de cento e cinquenta anos.

(Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de mais de cento e

cinquenta anos, mas tudo bem).

No bar ruim que ando frequentando ultimamente o proletariado atende por

Betão - é o garçom, que cumprimento com um tapinha nas costas,

acreditando

resolver aí quinhentos anos de história.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar "amigos" do

garçom,

com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam para

falarmos de literatura.

- Ô Betão, traz mais uma pra gente - eu digo, com os cotovelos apoiados

na

mesa bamba de lata, e me sinto parte dessa coisa linda que é o Brasil.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte dessa

coisa

linda que é o Brasil, por isso vamos a bares ruins, que têm mais a cara

do

Brasil que os bares bons, onde se serve petit gâteau e não tem frango à

passarinho ou carne-de-sol com macaxeira, que são os pratos

tradicionais da

nossa cozinha. Se bem que nós, meio intelectuais, meio de esquerda,

quando

convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de petit

gâteau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e

tal,

mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, gostamos do Brasil, mas muito

bem

diagramado. Não é qualquer Brasil. Assim como não é qualquer bar ruim.

Tem

que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo

americano

e, se tiver porção de carne-de-sol, uma lágrima imediatamente desponta

em

nossos olhos, meio de canto, meio escondida. Quando um de nós, meio

intelectual, meio de esquerda, descobre um novo bar ruim que nenhum

outro

meio intelectual, meio de esquerda, frequenta, não nos contemos:

ligamos pra

turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e decretamos que

aquele

lá é o nosso novo bar ruim.

O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo

frequentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e

universitárias

mais ou menos gostosas. Até que uma hora sai na Vejinha como ponto

frequentado por artistas, cineastas e universitários e, um belo dia, a

gente

chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual nem

meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e,

principalmente, universitárias mais ou menos gostosas. Aí a gente diz:

eu

gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio

intelectuais, meio de esquerda, as universitárias mais ou menos

gostosas e

uns velhos bêbados que jogavam dominó. Porque nós, meio intelectuais,

meio

de esquerda, adoramos dizer que frequentávamos o bar antes de ele ficar

famoso, íamos a tal praia antes de ela encher de gente, ouvíamos a banda

antes de tocar na MTV. Nós gostamos dos pobres que estavam na praia

antes,

uns pobres que sabem subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a

gente acha lindo, mas a gente detesta os pobres que chegam depois, de

Chevette e chinelo Rider. Esse pobre não, a gente gosta do pobre

autêntico,

do Brasil autêntico. E a gente abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima

de

tudo.

Os donos dos bares ruins que a gente frequenta se dividem em dois

tipos: os

que entendem a gente e os que não entendem. Os que entendem percebem

qual é

a nossa, mantêm o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do cunhado

para

tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de bacalhau no

cardápio e aumentam cinquenta por cento o preço de tudo. (Eles sacam que

nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida e nos

dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato). Os donos que

não

entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de lata por

umas

de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um som estéreo

tocando

reggae. Aí eles se dão mal, porque a gente odeia isso, a gente gosta,

como

já disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão Brasil, tão raiz.

Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda em nosso

país.

A cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente

gosta, os pobres estão todos de chinelos Rider e a Vejinha sempre

alerta,

pronta para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a

difundir o

petit gâteau pelos quatro cantos do globo. Para desespero dos meio

intelectuais, meio de esquerda que, como eu, por questões ideológicas,

preferem frango à passarinho e carne-de-sol com macaxeira (que é a mesma

coisa que mandioca, mas é como se diz lá no Nordeste, e nós, meio

intelectuais, meio de esquerda, achamos que o Nordeste é muito mais

autêntico que o Sudeste e preferimos esse termo, macaxeira, que é bem

mais

assim Câmara Cascudo, saca?.

- Ô Betão, vê uma cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?

O Aleijado, por Maximo Górki

O Aleijado, por Maximo Górki

por Casa do Gorgone - Literatura, Musica e Socialismo, domingo, 19 de junho de 2011 às 17:46

Foi numa escura e abafada noite de verão que encontrei, numa viela de arrabalde, um estranho quadro: no meio de grande poça lamacenta uma estranha mulher chapinhava na água suja como crianças gostam de fazer. Cantava, ao mesmo tempo, com voz fanhosa, uma canção indecente.

No dia anterior houvera forte trovoada e a pesada chuva tinha dissolvido o barro, a poça estava funda, a água lodosa chegava quase aos joelhos da criatura; a julgar por sua voz ela devia estar embriagada. Achei que se ela escorregasse poderia afogar-se e resolvi tirá-la de lá.

Puxei os canos das botas, entrei na poça e, agarrando um braço da mulher, tratei de puxá-la para um lugar seco. De início, aparentemente assustada, acompanhou-me docilmente. Mas, quando eu menos esperava uma reação, safou o braço direito, bateu-me no peito e berrou:

— Acuuudam!

Em seguida, tratou de voltar para a poça, arrastando-me com ela.

— Diabo! — murmurava ela — Não vou! Posso viver sem você… quero ver você viver sem mim… Socooorro!

O guarda-noturno apareceu da escuridão e, parando a uns cinco passos de nós, perguntou:

- Quem está fazendo escândalo aqui?

Expliquei-lhe que receava que a mulher se afogasse na lama e que tentara tirá-la de lá; o guarda olhou-a atentamente, escarrou com gosto e mandou:

- Saia daí, Mariana!

- Não quero.

- Estou mandando — Saia!

- Eu não.

- Vai apanhar, peste — avisou-a o guarda com toda a calma e, em seguida, informou-me bonachão: — É moradora daqui, cordoeira, chama-se Maria Froliha. Tem um cigarro?

Fumamos. A mulher andava dentro d’água exclamando:

- Autoridades! Sou eu, a minha autoridade… Se eu quiser, tomo banho e acabou-se!

- Toma banho coisa nenhuma! — advertiu-a o guarda, velho forte e barbudo. — São raras as noites em que ela não faz semelhante escândalo. E tem um filho aleijado em casa…

- É longe a casa dela?

- Merece morrer — afirmou o guarda sem responder à minha pergunta.

- Convém levá-la para a casa dela — sugeri.

O guarda riu-se, iluminou-me o rosto com a brasa do cigarro e afastou-se, ruidosamente, pisando o barro molhado.

- Pode levar… mas, olhe a cara dela primeiro.

A mulher sentou-se no meio da lama e, fazendo gestos como se estivesse remando, cantou com voz esganiçada:

— No mar, no vasto mar…

Perto dela brilhava o reflexo de uma estrela; quando seus movimentos encresparam a água, o brilho desapareceu. Entrei novamente na poça, peguei-a por baixo dos braços, soergui-a e empurrando a cantora com os joelhos fui levando-a para a cerca; a mulher resistia, e desafiava-me:

— Bata-me, pode bater! Bata, não faz mal… seu animal, bata!

Encostei-a à cerca, finalmente, e perguntei-lhe onde morava. Ela ergueu a cabeça olhando-me com olhos que antes pareciam manchas escuras e pude ver então que o nariz havia afundado, motivo por que a ponta ficou erguida e, o lábio superior repuxado pela cicatriz, descobria os dentes miúdos e brancos. Parecia que o rosto pequeno e rechonchudo estivesse sorrindo continuamente, de maneira repelente.

- EStá bem, vamos — concordou a mulher.

Partimos, esbarrando na cerca. A saia molhada chicoteava minhas pernas.

— Vamos, meu bem — murmurava a mulher aparentemente voltando a si. — vou agasalhá-lo… posso consolá-lo.

Levou-me ao quintal de um casarão de dois pavimentos. Cautelosamente, como se fosse cega, procurou caminho entre carroças estacionadas desordenadamente, pilhas de caixas, barris e lenha. Parando diante de um buraco nos alicerces, convidou-me a entrar.

Apoiando-me na parede escorregadia, amparando com a destra o corpo mole da minha protegida, desci a custo uns degraus traiçoeiros, chegando diante de uma porta; apalpando, encontrei o trinco, abri a porta e parei, hesitando em prosseguir.

- Mãe, é você? — indagou na escuridão uma voz mansa.

- Sou-u-u…

Forte odor de matéria decomposta de mistura com cheiro de alcatrão estonteou-me momentaneamente. Um fósforo ardeu, sua luz iluminou por instantes um pálido rosto infantil e apagou-se.

— Quem haveria de ser, senão eu?… — disse a mulher pendendo do meu braço.

Novamente, ardeu um fósforo e, desta vez, fina e estranha mão de criança acendeu pequeno lampião a querosene.

— Meu consolador, querido… — exclamou a mulher no instante em que seu corpo tombava sobre uma baixa e larga cama armada num canto do cubículo.

A criança cuidava do lampião e reduzia a torcida, quando ela começava a soltar fuligem. Seu rostinho compenetrado caracterizava-se por um narizinho pontudo e lábios cheios, de menina. O rosto delicado apresentava feições que pareciam desenhadas com fino pincel de grande mestre e parecia deslocado no úmido e escuro cômodo daquele porão. Conseguindo uma chama boa, encarou-me com estranhos olhos peludos e perguntou:

— Embriagada?

A mãe, largada através da cama, soluçava e ressonava.

- Precisa despi-la — falei.

- Então, dispa-a — respondeu o menino baixando os olhos.

Quando comecei a tirar as saias molhadas”, o menino perguntou:

- Apago a luz?

- Para quê?

A criança nada respondeu e lidando com o corpo inerte da mãe, observei o menino: estava sentado dentro de um caixão colocado embaixo da única janela; o lado do caixão trazia em grandes letras a inscrição:

CUIDADO

N. R. & Cia. Ltda.

A parte inferior da janela achava-se à altura dos ombros do menino; ao longo da parede, havia diversas prateleiras estreitas e nestas enfileiravam-se pilhas de caixas de fósforos e caixinhas de papelão. Ao lado do caixão, que abrigava o menino, havia outro de boca para baixo, coberto com papel amarelo, servindo de mesa. O menino cruzara os bracinhos esquálidos atrás da nuca e fixara a vista nas escuras vidraças.

Terminei de despir a mulher, joguei suas roupas molhadas em cima do fogão, lavei as mãos numa bacia de barro que achei no canto e, enxugando-as no lenço, disse ao menino:

- Então, adeus!

Olhou-me e perguntou ciciando um pouco:

- Apago a luz agora?

- Como quiser.

- Vai embora mesmo, não vai deitar?

Esticou a mão apontando a mãe:

- Com ela?

- Para quê? — indaguei, sem propósito.

- Você há de saber — disse o menino numa simplicidade terrível e, esticando-se, acrescentou:

- Todos deitam.

Fiquei confuso e olhei em redor: à direita vi um fogão disforme, louça suja pendurada numa armação, num canto um rolo de cabo alcatroado e um monte de estopa, lenha e um pau de carregar baldes.

A meus pés o corpo amarelo, adormecido da mulher.

- Dá para ficar um pouco com você? — perguntei

O menino olhou-me de esguelha, ao responder:

- Ela só vai acordar quando for dia.

- Não me importa.

Acomodei-me de cócoras ao lado do caixão e contei-lhe como havia encontrado a mãe dele, tratando de dar um cunho humorístico à narrativa:

— …Sentou-se na lama, ficou a remar com as mãos, cantando sempre…

O menino esboçou um gesto concordando, sorriu mansamente e, coçando o peitinho mirrado, disse:

— É que estava embriagada. Mesmo sóbria ela gosta de brincar. Parece criança.

Pude então observar bem seus olhos. Realmente davam a impressão de estarem cobertos de pêlos; as sobrancelhas muito compridas e pestanas longas e arcadas davam essa impressão. Olheiras azuladas destacavam-se no rosto pálido. Acima da ampla testa branca e lisa aparecia a vasta cabeleira quase ruiva e encaracolada Impossível descrever a expressão de seus olhos. Pude suportar com dificuldade a intensidade daquele olhar que, embora calmamente compenetrado, tinha algo de sobre-humano.

— Que há com as suas pernas?

O menino remexeu no monte de trapos, que lhe serviam de cobertas, e levantando-a com a mão ergueu uma perninha seca, mais parecida com uma raiz ressequida. Pondo-a no bordo do caixão explicou:

- Minhas pernas são assim, as duas. De nascimento. Não andam, não vivem…

- E nas caixinhas, o que há?

- Jardim zoológico — respondeu o menino. Pegou em seguida, a perninha, recolocou-a no fundo do caixote, cobriu-a e sorrindo amistosamente indagou:

- Quer que lhe mostre? Então, sente-se direito; você nunca viu coisa semelhante.

Seus braços compridos e as mãos delgadas moviam-se com surpreendente agilidade enquanto tirava as caixinhas das prateleiras, uma por uma, e as apresentava.

- Não abra, senão fogem! Encosta ao ouvido e escute — que tal?

- Alguma coisa se mexe.

- Isso, é uma aranha safada. O nome dela é Tambor, êeta bicho ladino!

Os maravilhosos olhos do menino brilhavam animados. Os dedos ágeis tiravam as caixinhas, encostavam-nas no ouvido dele, em seguida no meu, enquanto ele explicava:

— Aqui mora uma barata, o nome dela é Anissim. Gosta de contar vantagens, que nem os soldados. Aqui é a casa da mosca. Chama-se Funcionária, é uma peste! Ronca o dia inteiro, xinga a todo o mundo, chegou até a puxar a mãe pelos cabelos. Nem parece mosca — é funcionária, tal e qual, que passa o dia falando mal de todos, mexericando. Aqui está um besouro preto, enorme, é o Patrão; não é mau camarada, só que pau d’água e muito dissoluto. Quando bêbedo fica engatinhando no pátio, pelado, cabeludo, parece um cão preto. Aqui é um besouro, Tio Nicodim, agarrei-o no pátio; é um andarilho malandro, daqueles que pedem esmola dizendo que fazem coleta para a igreja. Mamãe o chama O Barato — também é amante dela. Ela tem amantes à vontade, embora não tenha nariz.

- Ela não bate em você?

- Qual nada! Ela não pode viver longe de mim. Ela é boa, só que bebe, mas na nossa rua todos bebem… Ela é bonita e alegre, o diabo é que bebe muito! Eu peço sempre “deixe, boba, de beber vodca, você pode até ficar rica se deixar”. Ela ri apenas. É mulher — e mulher boba ainda por cima… Mas é boazinha; quando ela acordar você vai ver!

Seu sorriso cativante era tão encantador que senti vontade de chorar, de berrar, de fazer alguma loucura, tal foi a pena e compaixão que senti por ele.

A linda cabecinha balançava no pescocinho magro, parecendo estranha flor tangida pelo vento; o brilho de seus olhos maravilhosos prendia-me mais e mais.

Ao ouvir sua conversa infantil, mas assustadora, eu esquecia por vezes onde me achava, para depois, de repente, voltar à realidade, quando avistava a janela com grades cheias de barro, a bocarra negra do fogão, o monte de estopa e o corpo amarelo da mulher-mãe.

- Gostou do jardim zoológico? — perguntou o menino, orgulhoso.

- Muito.

- Só não tenho borboletas…

- Como se chama?

- Leonhka!

- É meu chará.

- Não diga! E você, que espécie de homem é?

- Nada de especial… como outro qualquer.

- Essa não! Todos os homens são diferentes — são alguma coisa, eu sei. Você é bom.

- Talvez.

- É sim. E acanhado também.

- Essa, por quê?

- Sei que é!

O menino sorriu e piscou-me o olho.

- Mas, por que acha que sou acanhado?

- Está fazendo horas comigo, quer dizer que receia partir de noite!

- Mas, já está amanhecendo.

- Pois é, quando amanhecer irá embora.

- Voltarei para estar com você.

O menino não acreditou, cobriu os maravilhosos olhos com as pestanas e refletindo um pouco perguntou:

- Para quê?

- Para ficar com você. Acho você muito interessante. Posso vir?

- Pode. Muita gente vem aqui…

Suspirou e disse:

- Não acredito que volte…

- Por Deus do céu! Volto, sim!

- Então venha. Venha ver-me, não a mãe, ela que vá lamber sabão! Seremos amigos, nós dois, tá?

- Tá.

- Isso sim. Não faz mal que você é grande. – Que idade tem?

- Vinte e um.

- Eu vou fazer doze. Não tenho amigos, só Katya, filha do aguadeiro, mas a mãe bate nela quando ela vem me ver… Você é gatuno?

- Não. Por que?

Seu rosto é muito feio, tão magro e tem um nariz como os gatunos têm. Dois gatunos costumam vir aqui: um é Sachka, é bobo e mau; o outro é Joãozinho; esse é bem, tão bonzinho como um cachorro. Você tem caixinhas?

- Trarei algumas.

- Traga, sim. Eu não direi a mamãe que você vem…

- Por que não?

- Porque sempre fica contente quando os homens voltam. Gosta tanto de homens — é uma vergonha! Ela é engraçada — minha mãe. Estava com quinze anos quando me deu à luz — e nem sabe como foi! Quando você volta?

- Amanhã, à noite.

- À noite, ela já estará bêbada de novo. Que você faz para ganhar a vida, já que não é ladrão?

- Vendo cidra bávara.

- Não diga? Traga uma garrafa, sim?

- Claro. Bem, tenho que ir indo.

- Então vá. Mas, volta mesmo?

- Sem falta!

O menino estendeu-me ambas as mãozinhas magras e peguei-as com ambas as minhas apertando aqueles ossinhos finos e frios; tratei de sair sem olhar para ele.

Amanhecia. Vênus, o astro da madrugada, brilhava acima das úmidas e dilapidadas casas. Numa carroça próxima do portão dormia um camponês; seus enormes pés descalços sobravam para fora do veículo, a barba dura, aparada em ponta, espetava o céu, os dentes brancos que apareciam através dos fios da barba davam a impressão de que o homem estivesse rindo fazendo pouco caso de tudo e de todos. Um velho cachorro, em cujo lombo aparecia um lugar depilado, onde ele havia levado um jato de água fervente, aproximou-se de mim, cheirou minhas calças e soltou um lamento obrigando-me a sentir pena dele.

As poças d’água nas ruas que, durante a noite foram apenas repugnantes, refletiam o azul do céu e brilhavam sob os raios do sol nascente — esse embelezamento parecia deslocado, desnecessário e portanto ofensivo.

No dia seguinte falei com as crianças que moravam na minha rua e pedi-lhes que apanhassem besouros e borboletas, fui à farmácia e comprei umas caixinhas bonitas, arranjei duas garrafas de cidra, bolachas, balas, uns pães doces — e assim armado fui visitar o meu chará.

O menino recebeu os presentes maravilhado, abrindo desmesuradamente os olhos que, à luz do dia, eram mais encantadores ainda que de noite.

— Oo — ho! — ho! — exclamou com voz baixa que não parecia a de uma criança, — quanta coisa trouxe! Então você é rico? Mas como pode ser isso? — é mal vestido, mas é rico — e diz que não é ladrão? Mas que caixinhas lindas! Meu Deus, nem quero tocar nelas com as mãos sujas… Que é isso? Um besouro, mas que lindo! Parece de bronze, é esverdeado até! ó diabo, quer fugir? Deixe disso!

De repente, gritou todo alegre:

- Mãe! Venha cá, lave-me as mãos! Venha ver só o que ele trouxe! É aquele mesmo, de ontem, o que trouxe você para casa como se fosse um guarda — tudo é dele! É meu chará também…

- Precisa agradecê-lo — ouvi às costas uma estranha voz.

O menino abanou a cabeça diversas vezes, concordando :

— Obrigado, muito obrigado!

O porão estava cheio de estranha poeira cabeluda e através dela tive pena ao entrever em cima do fogão a cabeça despenteada e o rosto disforme da mulher, o

brilho de seus dentes num eterno sorrir que ela nunca podia apagar em seu rosto aleijado.

- Boa tarde!

- Boa tarde! — respondeu a mulher; sua voz rouca era baixa mas animada, quase alegre. Olhava-me de olhos apertados; pareceu-me perceber certa ironia.

O menino esqueceu minha presença; mastigava uma bolacha, cantarolava de boca cheia e cuidadosamente abria as caixinhas — as compridas pestanas lançavam sombras nas faces realçando o azul das olheiras. Através das vidraças sujas, aparecia um sol baço e apagado como o rosto de homem velho iluminando os cabelos encaracolados do garoto. Sua camisa estava desabotoada e pude ver as pulsações de seu coração que, a cada batida, agitava a pele fina do aleijadinho.

A mãe desceu do fogão, molhou a ponta de uma toalha e, pegando a mão esquerda do garoto, quis lavá-la.

— Fugiu! Pare! Fugiu! — gritou Leonhka e começou a remexer nos panos malcheirosos, descobrindo as pernas azuis, imóveis. A mulher riu-se e aos gritos — Pega o fujão! — ajudou na busca.

Quando pegou o besouro colocou-o na mão espalmada e olhando-o com os olhos cor do céu, disse-me com ar de intimidade como se fôssemos amigos de longa data:

- Desses há muito!

- Não esmague! — advertiu-a o garoto. — Sabe, um dia quando ela estava bêbada, sentou-se em cima do meu zoológico — nem sei quantos bichinhos esmagou!

- Esqueça isso, meu bem!

- Trabalhei tanto para enterrá-los!

- Mas, em compensação, quantos não apanhei e trouxe para você.

- Apanhou! Apanhou, sim, mas acontece que aqueles outros eram ensinados. Os que morrem eu enterro embaixo do fogão, sabe? Lá é meu cemitério… Eu tinha uma aranha, chamava-se Minca — era tão parecida com um dos amantes da mãe, um que está na cadeia agora, gorduchão, alegre…

- Filho meu, querido — disse a mulher acariciando a cabecinha do menino com sua mão pequena de dedos rombudos. Empurrou-me com o cotovelo e sorrindo com os olhos perguntou:

- Não é bonito meu filhinho? Que olhinhos tem, hein?

- Tome um olho e me dê as pernas — propôs o garoto sorrindo sem parar de observar o besouro. — Que bicho! Parece de ferro… gordão… Mãe! É parecido com o monge para quem você fez a escada de cordas, lembra?

- Lembro-me, claro!

Rindo-se começou a me contar:

— Sabe, apareceu um dia um monge, grandalhão, custou a entrar até. Perguntou-me então: “Pode fazer uma escada de cordas para mim?” Eu nem ouvira falar em tais escadas; então, respondi que não, que nunca havia feito. “Eu ensino”, disse ele. Abriu a sotaina e não é que toda a barriga dele estava enleada com uma corda fina, mas forte, forte? Ensinou-me. Fiquei fazendo a tal escada, enquanto pensava: para quê será que ele precisa da escada? Deus o livre que tencione assaltar uma igreja!

A mulher riu-se abraçando o filho e acariciando-o sempre.

— Quando ele veio buscar a escada eu falei: Se for para coisa desonesta não entrego. Ele riu-se, assim com ar de espertalhão e respondeu: “Não, isso é para trepar no muro; o nosso muro é muito alto, somos pobres pecadores e o pecado mora do lado de lá do muro — entendeu?” Entendi e rimo-nos juntos, rimos tanto!

— É, você ri muito, até demais — disse o garoto tal e qual um adulto repreendendo uma criança. — Que tal se você fizesse chá para nós?

- Não temos açúcar…

- Compre então…

- Dinheiro também não temos.

- Gastou tudo em bebida! Peça a ele…

Virando-se para mim, o rapazinho perguntou:

- Você tem dinheiro?

Dei dinheiro à mulher; ela não esperou mais nada — saltou

de pé, agarrou o encardido samovar e desapareceu pela porta afora, cantarolando.

— Mãe! Lave a janela. Está escuro, não enxergo nada! Minha mãe é esperta, só vendo — confiou-me o garoto distribuindo cuidadosamente as caixinhas e colocando-as nas prateleiras de papelão dependuradas com barbantes amarrados a pregos, que haviam sido enfiados nos tijolos úmidos. — É muito trabalhadeira. Quando começa a desmanchar cabos para fazer estopa, fica uma poeira! Peço então que ela me leve para fora para respirar ar fresco e ela diz: “tenha paciência filho, agüente mais um pouco, sem você fico triste! Gosta muito de mim. Trabalha e canta — conhece milhares dê canções,

O menino começou a reproduzir uma das canções que aprendera com a mãe, mas foi interrompido pelos sons de um realejo que começou a gemer no pátio. O menino alvoroçado pediu-me que o erguesse à janela para que pudesse escutar melhor.

Levantei o frágil esqueleto contido no invólucro de pele fina e cinzenta. Leonhka enfiou a cabecinha pela janela aberta e ficou ansiosamente imóvel; só as perninhas impotentes balançavam arranhando a parede. O realejo lançava ao ar farrapos irreconhecíveis de uma melodia qualquer, uma criança gritava deliciada e um cão uivava. O aleijadinho absorvia ansiosamente a sinfonia bárbara e produzia sons com a boca fechada, tentando acompanhar a melodia fugidia.

No porão havia menos poeira e por isso enxergava-se melhor. Pude ver sobre a cama da mãe barato relógio de pêndulo. A louça na prateleira continuava suja e grossa camada de poeira cobria tudo. Nos cantos havia grandes teias de aranha e a poeira depositara-se nelas transformando-as em panos fúnebres. O lar do pobre estropiado antes parecia monturo onde as ofensivas características da pobreza saltavam à vista fosse para onde fosse que o observador dirigisse o olhar.

Ouvimos o canto familiar do samovar e, como que assustado por ele, o realejo parou de repente. Em lugar deste, ouvimos a voz feroz de alguém que rosnava:

- …esfarrapados!…

- Tire-me daí — suspirou o menino. — Enxotaram-nos.

Recoloquei-o cuidadosamente em seu caixão-cama; o menino esfregou o peitinho e, tossindo com receio, disse:

- Doe-me o peitinho, não posso respirar ar de verdade por muito tempo… Escute, você já viu diabinhos?

- Não.

- Nem eu. De noite costumo olhar embaixo do fogão para ver se não aparece algum, mas qual — não aparecem. Não é verdade que os diabos aparecem nos cemitérios?

- Para que queres os diabos?

- É interessante. Quem sabe um deles seria bonzinho? Katya, a filha do aguadeiro, viu um diabinho no porão e assustou-se, mas eu não tenho medo dessas coisas.

Acomodando-se melhor em seu leito, o garoto continuou vivamente:

— Gosto até, gosto de pesadelos, viu? Um dia sonhei com uma árvore que cresceu às avessas — as folhas espalhadas pelo chão e as raízes apontando o céu. Até suei de medo e acordei. Outro dia sonhei com a mãe — ela estava deitada toda nua e um cachorro arrancava-lhe o ventre aos pouquinhos. Tirava um bocado e cuspia, tirava outro e cuspia. Outra noite foi a nossa casa que estremeceu e toca a deslizar pela rua batendo as portas e janelas e a gata da funcionária corria atrás da casa…

O rapazinho estremeceu como se sentisse frio, apanhou uma bala e, tirando-lhe o papel, endireitou-o meticulosamente depondo-o no peitoril da janela.

— Desses papéis farei alguma coisa bonita. Ou, então, darei a Katya; ela também gosta de coisinhas bonitas — cacos de louça, pedaços de vidro, papeizinhos, qualquer coisa. Escute, se a gente alimentar bem uma barata ela pode ficar do tamanho de um cavalo?

Era evidente que o menino acreditava nessa possibilidade, por isso respondi:

- Alimentando bem, é capaz.

- Pois então — exclamou radiante — e mamãe, bobona, acha graça!

Terminou, usando palavra ofensiva a qualquer mulher.

- Ela é tola! Um gato então é fácil fazer ficar do tamanho de um cavalo não é?

- É pena que não tenho comida que chegue — seria tão divertido!

O garoto estremeceu de entusiasmo e apertou o peito com as mãozinhas.

— As moscas ficariam do tamanho de cachorros, e as baratas poderiam puxar tijolos. Se eles fossem do tamanho de cavalos, seriam fortes, não seriam?

- Os bigodes iriam atrapalhar…

- Qual nada! Os bigodes serviriam de rédeas. Ou, então, apareceria uma aranha grande, mas a aranha não deveria ficar maior que um gatinho, senão a gente ficaria com medo. Não tenho pernas, mas se tivesse, iria trabalhar e arranjaria comida suficiente para fazer crescer todos os meus bichinhos. Iria comerciar e compraria para mamãe uma casa, lá no campo. Você já esteve no campo?

- Já, muitas vezes.

- Conte-me como é!

Comecei a contar-lhe dos campos e prados. Escutava-me atentamente; as pálpebras desciam-lhe sobre os olhos, a boquinha abria-se e o garoto parecia estar adormecendo; diante disso passei a falar cada vez mais baixo, mas então, apareceu a mãe trazendo o chá, um pacote em baixo do braço e uma garrafa de vodca enfiada entre os seios.

- Pronto! Já cheguei!

- Que beleza… — suspirou o menino, — só grama e flores e mais nada. Mãe, você poderia arranjar um carrinho e me levar ao campo um dia! Senão eu morro algum dia desses, sem conhecer os campos. Você não presta, mãe… — terminou o garoto, tristonho e ofendido.

A mãe não se ofendeu e aconselhou, com brandura:

- Não me xingue, filho, você ainda é pequeno.

- Não me xingue!… Você está bem, pode ir aonde quer, como um cachorro. Você é feliz… Escute — disse virando-se para meu lado — foi Deus quem fez o campo?

- Decerto foi.

- Para quê?

- Para os homens passearem.

— Campo cheio de flores… — suspirou o garoto. — Eu levaria lá o meu zoológico e soltaria todos… que passeassem à vontade. Mas, diga-me, quem fez Deus?

A mulher quase morreu de riso. Caiu na cama, esperneava e gania entre acessos de risadas sufocantes:

- Ai, ai, ai! Que pergunta! Mas que menino! Matou-me! Matou-me de uma vez!

O garoto olhou a mãe com sorriso condescendente e sem irritação, sem maldade, como se usasse um termo carinhoso, proferiu palavra das mais obscenas.

- Parece criança, gosta de dar risadas, só vendo… — e repetiu o termo obsceno.

- Deixe que ria, isso não ofende a ninguém — defendi a mulher.

- É, ofender, não ofende — concordou o aleijadinho. — Só fico zangado com ela quando não lava a janela. Peço, peço, digo “Mãe, lave a janela; não consigo ver a luz de Deus!” — e ela esquece sempre…

A mãe, lavando a louça, piscava-me o olho dizendo:

— Que tal meu filhinho? Não fosse ele eu me jogaria no rio, por Deus do céu! Ou me enforcava.

Dizia-o sorrindo.

De repente, o menino perguntou-me:

- Você é bobo?

- Não sei. Por que?

A mãe diz que é…

- Ora, mas não vê por que eu disse? — exclamou a, mulher sem se constranger por Isso. — Trouxe da rua mulher bêbeda, pô-la a dormir e foi-se embora! Foi por isso que falei, não foi por mal — e você conta…

A mulher falava como criança, seu fraseado lembrava o de meninas adolescentes. Seus olhos também eram límpidos, jovens, tanto mais espantoso era seu rosto desfigurado, seu lábio repuxado e dentes a mostra.

— Vamos tomar chá! — convidou ela solenemente. O samovar, sobre uma caixa ao lado do menino, soltava alegres fiapos de vapor e o garoto apanhava-os sonhador e, sentindo na palma da mão a umidade condensada, enxugava nos cabelos cacheados.

— Quando eu for grande, mamãe vai arranjar para mim um carrinho com que eu poderei andar pelas ruas pedindo esmolas. Quando ganhar o bastante para o dia, deixarei as ruas e sairei para os campos…

A mulher suspirou pesarosa: — Ele imagina que os campos são um paraíso! Em vez, lá estão os acampamentos cheios de soldados malvados, camponeses embriagados…

- Mentira — interrompeu-a o garoto. — Pergunte a ele como são os campos. Ele viu.

- E eu, não os vi, também?

- Embriagada?

Discutiram com o ardor e falta de lógica de crianças. Lá fora anoitecia; no céu cor de rosa parou uma grande nuvem imóvel, o porão tornou-se escuro.

O menino tomara uma caneca de chá quente. Transpirou, olhou-nos e disse:

- Comi, bebi e até fiquei com sono — por Deus do céu…

- Então, durma filhinho.

- Mas, se eu dormir ele vai embora. Você não vai fugir?

- Não tenha medo, não; eu não deixo — assegurou a mãe empurrando-me com o joelho.

- Não vá — pediu o menino bocejando. Esticou o corpinho e caiu no leito adormecendo, mas de repente soergueu-se e disse à mãe repreendendo-a:

- Bem que você poderia casar-se com ele, como fazem as outras mulheres; em vez você se dá com todo mundo e eles só batem em você… Ele não bate, é bom…

- Durma, filho, durma — murmurou a mulher debruçando-se sobre o pires com chá.

- Ele é rico…

Por uns instantes, a mulher permaneceu quieta, depois confiou-me como a um velho amigo:

- Assim vivemos, nós dois e mais ninguém. O povo me xinga, dizem que sou rameira! E daí? Não preciso ter vergonha de ninguém. De mais a mais, o senhor vê que cara estragada tenho… qualquer um logo vê para que sirvo. Sim, adormeceu, meu anjinho, minha consolação na vida. Não é bom o meu filhinho?

- Muito bom!

- Não me canso de olhar para ele… É esperto, não é?

- É, sim!

- Só tinha que ser — o pai dele foi um senhor, homem culto; um velhinho. Como a gente chama a esses velhos que têm escritório e vivem escrevendo em papel timbrado?

- Tabelião?

- Isso! Isso mesmo! Foi muito bonzinho, tratava-me bem, fui empregada dele.

A mulher aproximou-se de mim dizendo:

- Morreu de repente. Foi de noite. Mal saí do quarto dele, caiu no chão e morreu! O senhor vende cidra?

- Sim.

- Por sua conta?

- Sou empregado.

A mulher cobriu cuidadosamente as perninhas do filho, arrumou o travesseiro e retomou a narrativa:

- O senhor não precisa de ter nojo de mim, já não estou infectada. Pode perguntar a quem quiser todos me conhecem!

- Eu não tenho nojo.

Pondo a pequena mão com a pele gasta nos dedos e unhas quebradas, ela continuou a falar com acentos de amável gratidão:

- Agradeço-o sinceramente por meu filhinho. Para ele hoje é dia de festa. Foi muito bondoso…

- Tenho que ir.

- Aonde? — perguntou admirada.

- Tenho que fazer.

- Fique!

- Não posso…

Olhou o filho, desviou os olhos para a janela por onde se avistava o céu e insistiu em voz baixa:

— Bem que poderia ficar. Eu cobriria a cara com o lenço… É que eu gostaria de mostrar-me grata pelo filho… Cubro-me, que acha?

Falava de maneira tão irresistivelmente humana, tão ansiosa de agradar! Seus olhos — olhos infantis em rosto deformado —- brilhavam com singular sorriso, não de mendiga, mas de pessoa rica que tem o que dar em agradecimento.

- Mamãe! — gritou o menino de repente, soerguendo-se no leito e estremecendo. — Estão rastejando! Venha! Acuda!

- Está sonhando, coitado — disse a mãe, inclinando-se, protetora.

Saí para o pátio e entreparei pensativo. Pela janela aberta do porão ouvi estranha canção com que a mulher ninava o aleijadinho.

Afastei-me com passos rápidos e lutando para não desatar em soluços.